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Por Carolina Grassmann e Vitor Correia Edição #64

Censurada, mas sempre utilizada

Prostituição masculina e de mulheres mais velhas em São Paulo revela traços dos hábitos sociais brasileiros

Em uma sociedade patriarcal, onde ‘comer uma puta’ funciona como rito de passagem de tantos garotos, é desolador perceber o descaso da sociedade com estas mulheres, que se sujeitam a muitas condições desumanas para sobreviver”. É o que pensa Caio Novaes, antropólogo da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa e investigador associado ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (Cria). A prostituição, de maneira geral, é censurada no domínio público, oprimindo quem nela trabalha, mas exaltada no domínio privado. Para Novaes, a educação sexual em escolas é fundamental para que essas questões sejam melhor resolvidas e pensadas em sociedade.

Entretanto, por mais que sejam maioria, não são apenas mulheres que se encontram na prostituição. Para Guilherme Passamani, pesquisador na área de Estudos de Gênero pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a prostituição masculina como um de seus principais temas de pesquisa , está no senso comum que a prostituição é uma profissão degradante, o contrário de uma vida digna. Apesar de a maioria das histórias de prostituição masculina demonstrarem vulnerabilidade, começou-se a observar uma possibilidade de escolha pela prostituição, que pode levar a uma história de sucesso.

De acordo com Passamani, a maioria dos “michês”, denominação usada para homens que se prostituem, caracteriza-se como heterossexual, afirma-se ativo na relação e muitos possuem relacionamentos afetivos com mulheres. Existe uma separação entre prática e orientação sexual no discurso desses homens, ou seja, sua prática na prostituição pode ser homossexual, mas isso não define sua orientação sexual.

Seja homem ou mulher, o perfil de pessoas na prostituição é mais diverso do que pressupõe o senso comum. De mulheres já com mais idade que não encontraram alternativa de sobrevivência a homens que optaram pela profissão, são muitas e diferentes as pessoas que vendem seus corpos, seja na rua ou por meio digital.

Velhas “meninas”

No imaginário popular, a prostituição é ligada a mulheres jovens, bonitas, com corpos dentro dos padrões estéticos midiáticos e vestindo roupas curtas. Entretanto, no Centro de São Paulo, há um cenário que caminha na contramão desse estereótipo. A maioria das mulheres trabalhando nas ruas da região tem 40 anos ou mais. Em locais espalhados pela zona central da metrópole, estão mulheres mais velhas que oferecem seus corpos por valores que variam de 30 a 100 reais.

O Jardim da Luz, ao lado da Pinacoteca do Estado de São Paulo, é um espaço histórico para as velhas prostitutas. Apesar de parecer abandonado, ainda é frequentado por determinado público: prostitutas com mais de 40 anos, que movimentam o local ao usarem como ponto de trabalho. Em plena tarde, durante a semana, as senhoras com vestidos estampados e bolsas transversais sentam-se nos bancos e esperam pelos clientes. Eles chegam, combinam o preço e outros detalhes, para então partirem para hotéis da redondeza.

Em um dos assentos do parque, Maria, de 47 anos, que não quis informar seu sobrenome, fazia suas unhas. Ela se prostitui há dois anos, mas diz estar cansada da profissão, só esperando o verão para vender água em faróis. “Precisamos correr para onde estamos ganhando mais para poder comprar umas coisinhas. Aqui tá muito devagar”, justifica.

Antes de se prostituir, era carroceira e se sentia explorada. A prostituição deu a Maria a possibilidade de ter um local para morar. Antes, dormia na rua ao lado de seus quatro filhos, mas perdeu a guarda deles há 18 anos para o Conselho Tutelar, por tê-los exposto aos perigos da rua, e até hoje não tem notícias deles. “A gente vai lutando como vai podendo”, completa.

Antes do programa, já combina o preço e suas regras com o cliente. Para Maria, o risco de o cliente não pagar é inexistente. Caso isso aconteça, é só “pegar o que tiver pela frente, seja rodo ou vassoura, e sair correndo atrás do mau sujeito”. Em alguns casos também, quando não existe a possibilidade do pagamento, ela pega bens dele que poderá vender depois, como relógios. Mas Maria conta que é raro isso acontecer, já que muitos de seus clientes estiveram com ela mais de uma vez e, dessa forma, sabe que são de confiança. “É um serviço, não adianta. Do jeito que foi falado na rua, tem que acontecer no quarto”, interrompe a manicure de Maria, que costuma atender grande parte das prostitutas que trabalham no Parque da Luz.

Maria acrescenta que, mesmo nos casos de agressão, não há irmandade entre as prostitutas. É cada uma na sua e por si. Na Luz, caso ocorra alguma briga, os seguranças intervêm, mas nada além disso.

Para promover a cidadania e a garantia de direitos humanos das mulheres em situação de prostituição, existe a ONG Mulheres da Luz, localizada no Jardim da Luz, que auxilia prostitutas, dá auxílio médico, preservativos, oficinas de costura e até mesmo aulas de Português para alfabetizá-las. O maior objetivo da organização é garantir que essas mulheres se sintam acolhidas e tenham seus direitos respeitados.

A organização é formada pela freira Regina Célia Corandin, e por duas ex-prostitutas: L.T., que pediu para não ser identificada, e Cleone, que não quis informar seu sobrenome. Também recebem auxílio de uma voluntária portuguesa chamada Gabriela Lopes. O espaço é uma pequena sala localizada embaixo da administração do parque.

Corandin conta que o parque é o ganha-pão destas mulheres, que não tiveram muitas oportunidades na vida. Com o apoio de psicólogos, a ONG procura trabalhar com a autoestima delas, já que grande parte possui um preconceito consigo mesma. Sentem-se culpadas pelo fato de a maioria de seus clientes serem homens casados, que gastam dinheiro com elas em vez de prover suas famílias. “Nosso trabalho é reforçar que elas são cidadãs”, afirma Lopes.

Algumas dessas prostitutas, antes de terem esse trabalho, eram empregadas domésticas, mas não ganhavam o suficiente com a profissão para sustentarem suas famílias. Muitas não eram registradas, não possuíam nenhum benefício trabalhista e ganhavam menos que um salário mínimo.

A Mulheres da Luz, além de não aceitar qualquer tipo de preconceito, procura conscientizar as prostitutas a não terem relações sexuais sem o uso do preservativo. Além da problemática das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), uma gravidez indesejada também pode acontecer, situação em que a ONG não deixa de auxiliá-las. Procuram conscientizar as mulheres de que o pai deve estar presente na vida da criança e auxiliar com pensão alimentícia. Caso necessário, pedem apoio da Justiça. Já até fizeram o chá de bebê de uma dessas mães, mas contam também que essa não é uma situação muito frequente, por se tratar majoritariamente de um público mais velho.

Mas as prostitutas de mais idade não estão somente no Parque da Luz. Na Praça da Sé, encontra-se Luana, de 57 anos.  Óculos escuros no topo da cabeça, calça jeans, jaqueta de couro e cabelos loiros mesclados com fios grisalhos que entregam a idade. Não é casada nem tem filhos. Seu único contato com a família é sua irmã que mora no Rio de Janeiro. Sua ambição na vida é encontrar um emprego com carteira assinada, ganhando o suficiente para viver. Caso contrário, pretende se prostituir até quando a idade permitir.

A prostituta veterana vivia no Rio de Janeiro e, há quatro meses, resolveu se mudar para a região central da capital paulista, pois sentia que vivia em uma cidade muito perigosa. Veio para trabalhar como camelô, porém, suas mercadorias eram constantemente confiscadas e estava farta de correr do “rapa”. “Eu não tenho mais idade para isso”, afirma. Arranjou um emprego sem carteira assinada em uma banca de jornais na Sé, mas não era o suficiente para se sustentar.

Intercala seus trabalhos, sendo atendente na banca de jornais e se prostituindo no horário de almoço. Seu horário é das 9 às 16 horas, e se recusa a se prostituir à noite, por conta do perigo. Nunca passou por experiências negativas e se previne: sempre cobra o cliente antes, usa preservativo, está em dia com os exames ginecológicos e evita drogas e bebidas. Além disso, possui preferência por homens mais velhos, pois considera os mais jovens “encrenqueiros”.

Vidas extremas

Contrapondo os estereótipos da prostituição como uma atividade feminina, há também os garotos de programa. Nos arredores da Praça da República, encontra-se uma grande quantidade de “michês” que estão em situação de rua. Eles abordam os transeuntes em busca de algum trocado para a refeição do dia. É o caso de Lafon, como é conhecido por seus clientes e amigos, que pediu sigilo em seu primeiro e último nome. Ele caminha pela rua vestindo bermuda jeans e camiseta e nos pés um chinelo desgastado, além de exalar forte cheiro de álcool.

“Eu sou viado, sou Lafon, me prostituo”, é como se identifica o carioca de 46 anos, que está em São Paulo há nove. Veio para a cidade com seu então marido atrás de uma travesti que o “pilantrou”. Logo em seguida, foi abandonado por seu companheiro e, desde então, está nas ruas, onde vive sozinho. Lafon se prostitui há 19 anos e trabalha de maneira independente, ou seja, não está ligado a algum proxeneta, vulgarmente conhecido como “cafetão”. A maioria de seus clientes são homens casados que se dizem heterossexuais. Ainda acrescenta que parte de sua clientela é formada por deputados estaduais e vereadores, situados inclusive em um campo mais conservador. Para encontrar clientes, relatou bater de porta em porta dos carros na rua. “Ainda mais que sou negão e tenho ‘neca’ grande, as mariconas param de carro e atendo todas elas”, afirma sobre sua rotina de trabalho.

Lafon cursou Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e conta ter tido uma vida confortável antes de se mudar para São Paulo. “Eu tinha tudo, tinha carro, apartamento”, mas sua situação financeira mudou drasticamente quando chegou na metrópole e foi abandonado e enganado pelo ex-marido. “Tô aqui na rua porque sou uma idiota, besta, fui atrás de um bofe que me iludiu”, conta com lágrimas nos olhos e arrependimento. Também não possui o apoio da família, há anos sem contato. Ele destaca o relacionamento abusivo que tinha com o pai. “Eu quero que a minha família morra, meu pai é um pedófilo, que me estuprou”.

Dentro os inúmeros arrependimentos, Lafon se orgulha de nunca ter roubado. “Sou mendiga, amiga, mas sou bicha honesta”, afirma e completa que seu legado é a honestidade, mas convive frequentemente com o oposto por viver nas ruas de São Paulo. Apesar de ganhar uma quantidade baixa com os programas, Lafon consegue fazer pelo menos uma refeição por dia ao pedir trocados para as pessoas que encontra em seu caminho. “Que vida é essa? Ficar se humilhando por um prato de comida, as pessoas pisam na gente”, diz.

Todos esses traumas fizeram com que Lafon desenvolvesse uma dependência química em cocaína e álcool, além de se apegar à fé que possui em Jesus, única razão pela qual ainda não se suicidou. Sua única esperança para sair da rua é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas). Trata-se de um salário mínimo mensal destinado a pessoas com deficiência, que dificilmente conseguirá, pois está pleiteando o benefício por ser soropositivo.

“Tenho que ser forte, mas às vezes me dá vontade de desistir. Na rua, sem documento, negro, homossexual, que expectativa de vida eu tenho? As pessoas me veem e correm de mim. Eu queria ser uma bicha famosa, bonita, queria ter minha casa, mas tô longe disso. Sabe qual é meu destino? Caixão”, conclui.

Em total oposição à história de Lafon, está Ricardo*, de 20 anos. Ele se prostitui há três anos e começou ainda menor de idade nas ruas de Goiânia, sua cidade natal. Um dia chegou em casa e se deparou com suas malas na porta: sua mãe havia descoberto o seu trabalho.

Decidiu se mudar para São Paulo, cidade considerada a rota dos garotos de programa de todo o Brasil. Continuou se prostituindo nas ruas e saunas da capital paulista e começou a ganhar renome quando começou a utilizar sites que divulgam garotos de programa. Atualmente, considera-se um garoto de luxo, cobra 400 reais por hora e trabalha de três a quatro dias por semana, no máximo dois programas ao dia.

Após combinarem o preço e outros detalhes, a prostituta e seu cliente vão para hotéis da redondeza
Vitor Correia

Ricardo* é bissexual, com maior atração por mulheres, mas seus clientes costumam ser homens, no geral jovens e, quando mais velhos, casados. Quanto à proteção, exige sempre o uso de preservativo e realiza exames de DSTs todos os meses. “Garoto de programa geralmente é mais limpo do que os clientes, a gente se cuida muito”. Para realizar seus programas, ele sugere seu apartamento, mas, às vezes, clientes estrangeiros preferem nos hotéis em que estão hospedados.

Nunca passou por nenhuma experiência negativa relacionada à prostituição e conta gostar muito da profissão. “Quando você ultrapassa aquela linha [de sair das ruas], tudo se torna bom”, afirma. Diz, orgulhosamente, que paga todas suas contas sem precisar de ajuda e pretende continuar se prostituindo, mas também revela que essa não é sua única fonte de renda, possui muitos investimentos.

Ricardo* ainda conta que conseguiu viajar o mundo em 2017 e teve uma experiência inesperada em uma de suas viagens. Em Dubai, recebeu a proposta de um ministro de um país asiático, que não quis nomear, para encontrá-lo na Malásia, com passagens pagas. Chegando no aeroporto, um motorista estava esperando pelo rapaz, e no hotel precisou entregar seu celular para um segurança. O cliente gostou muito do jovem e bancou um mês de férias na Tailândia. “Não é possível que ele tenha gostado tanto de mim, deve estar me usando para fazer lavagem de dinheiro, só pode”, comenta, rindo.

“Acho que as pessoas têm uma visão do garoto vulnerável, que não tem opção, mas no fundo sempre temos outra escolha, só que essa vida ‘normal’ não me atrai, eu gosto de aventuras. A vida do garoto de programa não é fácil, é difícil como qualquer emprego, mas nossa diferença é que temos liberdade”, conclui.

 

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.