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Por Gustavo Ramos Edição #64

Um mundo sob ruínas

No futuro distópico de Akira, Katsuhiro Otomo mostra uma cidade decadente e um governo em colapso

ano é 2019. A cidade de Neo Tóquio, erguida ao lado da cratera da antiga Tóquio, pulsa com a violência. Os movimentos sociais e a decadência são ofuscados pelos arranha-céus e suas vitrines que afogam a metrópole em luzes neon. Nos jornais, são noticiadas as manifestações da população desempregada após reformas fiscais de um governo corrupto que controla a cidade a punho de ferro.

Escrito e dirigido por Katsuhiro Otomo, Akira, de 1988, revolucionou a forma de produção de animes. Para a época, novas técnicas de áudio e animação, como o prescoring, em que as bocas dos personagens são animadas realisticamente a partir dos diálogos gravados, foram pioneiras nas animações japonesas.

O contraste entre o avanço tecnológico e a degradação do homem é o eixo principal da trama. A violência nas ruas é uma ferida aberta na capital ultra tecnológica. A corrupção que, como um câncer, toma conta de todas as esferas da sociedade faz do futuro fictício uma projeção distópica muito próxima do que podemos ver no presente. Nos “submundos” da Neo Tóquio, hordas de motoqueiros se enfrentam constantemente. Uma dessas gangues é liderada por Kaneda, um adolescente de 16 anos que incorpora a rebeldia contra o estado e o sistema de ensino autoritário que toma o controle da cidade.

Durante uma perseguição entre gangues, Tetsuo, um integrante do grupo de Kaneda, se envolve em um acidente com uma estranha criança de aparência senil com poderes paranormais. Rapidamente, o Exército entra em ação para abafar qualquer suspeita sobre o ocorrido e Tetsuo é levado para testes em laboratório que despertam nele poderes telecinéticos. Parte da mágica da obra de Otomo reside justamente na forma como trabalha os limites entre o tecnológico e o sobrenatural, relacionando a estética cyberpunk ao xintoísmo e budismo – contrastes esses que caracterizam a cultura nipônica até hoje.

Traumatizada pelas catástrofes nucleares após a Segunda Guerra, a Terra do Sol Nascente fica sob o espectro da total destruição seguida pelo renascimento. Marcado pela tradição religiosa, o anime retrata o ciclo de vida e morte de uma cidade hipertecnológica que se depara com o abismo de uma antiga destruição que novamente está presente no distópico 2019.

Paralelamente, a capital japonesa está à beira de um colapso causado pela disparidade social entre os grandes empresários e a população desempregada que vive na miséria. Diversos atentados terroristas abalam o governo, que não é mais capaz de conter a revolta. Nas ruas, a polícia reprime os manifestantes, que, no desespero, aderem a discursos messiânicos e fanáticos.

Na busca por Tetsuo, Kaneda se relaciona com um grupo rebelde que espiona os militares cada vez mais presentes no controle do governo. Assim, descobre que diversos experimentos foram realizados em crianças. Uma destas, Akira, saiu do controle e resultou na obliteração da antiga Tóquio ficcional de 1988.

A criação de Otomo embarca nas diversas histórias derivadas do fantasma da bomba atômica no Japão. Elas têm em comum ameaças tão misteriosas quanto destrutivas que colocam a humanidade em risco, a exemplo do monstro gigante Godzilla, criação de Tomoyuki Tanaka eternizada no cinema por Ishiro Honda.

No making of do longa, o diretor diz que não há personagem principal ali. “Eu queria algo que fosse as divagações de Neo Tóquio”, afirmou. No final, a própria cidade se transforma na estrela do filme. Tetsuo é o protagonista para onde convergem os diferentes pontos de vista, que passa de um jovem franzino e inseguro para uma verdadeira arma nuclear. A reviravolta é quando essa figura ressentida, até então frágil, se transforma em um personagem faminto por poder e destruição em busca de vingança contra seus opressores.

Na mitologia do filme, existe uma energia bruta, responsável pela gênese e evolução do homem e do mundo. Tal poder é distribuído proporcionalmente aos seres e suas respectivas capacidades de modificação do universo – uma metáfora para a ciência e tecnologia. Em alguns casos, essa energia é concentrada em um único ser, como Akira e Tetsuo, e as consequências são o limite entre a criação e a destruição.

Sob as obras da infraestrutura para as Olimpíadas de 2020, capturado pelos militares, Tetsuo encontra onde estão guardados os restos de Akira. No ápice do colapso do governo, o Exército toma o poder do estado em um golpe, focando todo seu ataque ao jovem com o poder superior ao que levou à destruição da antiga capital. Representando a insaciável sede de poder da humanidade, Tetsuo perde o controle tentando fundir seu poder ao de Akira e se torna em uma explosão de luz e energia que destrói mais uma vez a capital japonesa. No lugar de governos autoritários, ideologias fanáticas e um polo tecnológico, é deixado para trás apenas um amontoado de ruínas e cinzas.