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Por Maria Luiza Reghini e Matheus Fernandes Edição #64

O médico e os monstros

Quase 60% dos profissionais de saúde já sofreram agressão no ambiente de trabalho, aponta pesquisa

Muitas são as reclamações em relação aos erros de diagnóstico, atendimento desumanizado e negligência. Contudo, casos de violência que fazem do médico a vítima, apesar de pouco aparecerem nos noticiários, são mais comuns do que se imagina. As agressões podem ser físicas, verbais e até mesmo abusos psicológicos e sexuais.

Em 2013, a cirurgiã plástica Renata Magalhães publicou em seu perfil do Facebook um texto no qual substitui a figura do médico por um motorista de ônibus. “Te dão um ônibus todo sucateado para dirigir. Vaza óleo, sua cadeira está com espuma faltando e isso começa a te causar dor nas costas. Você se cansa de reclamar para o seu chefe sobre as condições daquele ônibus, que são perigosas para os passageiros… e ninguém faz nada!”, escreveu, utilizando “ônibus” como uma metáfora para o “sistema de saúde”. “Até que um belo dia, o freio do ônibus não funciona, e todo mundo culpa você, dizendo que barbeirou”. O objetivo dela era denunciar a realidade desconhecida da profissão.

Nesse sentido, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), em parceria com os Conselhos Regionais de Enfermagem (Coren-SP) e Farmácia (CRF-SP), realizou uma pesquisa em agosto de 2018 com 6.832 profissionais da saúde. A sondagem mostrou que 57,7% dos entrevistados já sofreram algum tipo de agressão no ambiente de trabalho, sendo que 75,6% dos casos se deram na rede pública. O estudo revelou ainda que quase 80% dos médicos não realizaram denúncia após a agressão, principalmente pela sensação de impunidade e falta de apoio da instituição pela qual atendiam.

Os três conselhos lançaram no mês seguinte a campanha “Quem cuida merece respeito” para o combate à violência contra profissionais da saúde. “Precisamos reverter esse quadro, nos aproximando cada vez mais desses profissionais e de seus locais de trabalho, dando todo o apoio para que se sintam acolhidos e com segurança para denunciar as agressões sofridas”, afirma Lavínio Camarim, presidente do Cremesp.

Há quase cinco anos, Felipe Audi, então plantonista de um pronto atendimento infantil, ficou entre salvar a vida de um paciente ou a própria. Após um conflito armado entre duas gangues rivais próximo ao hospital, começaram a chegar alguns pacientes baleados. “Um desses casos chegou e evoluiu com parada cardíaca, e iniciamos reanimação do paciente. No meio das manobras, ficamos sabendo que quem baleou o paciente estava questionando se estávamos tomando partido para a outra gangue. Uma ameaça. Chamamos a polícia no mesmo momento, mas as autoridades simplesmente não apareceram”, lembra. Desde então, não trabalhou mais no local.

Nos casos de violência por um atestado médico, Viviane Dolácio é especialista. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), a médica passou por apuros quando foi ameaçada de morte. Toda segunda e sexta-feira, uma de suas pacientes passava por consultas, sempre com os mesmos sintomas relatados. A frequência das visitas e a falta de justificativas aparentes chamou a atenção da doutora. Dolácio relatou que negava os atestados médicos e que sofria inúmeras ameaças de morte vindas da mulher. Um dia, a médica descobriu que a “paciente dos atestados” trabalhava em uma empresa de segurança como responsável por guardar os armamentos.

O anestesista Solon Maia conta que já foi agredido inúmeras vezes. Em um dos casos, teve “a sorte e a agilidade” para escapar da violência. “Encaminhei para a maternidade uma gestante no início do trabalho de parto. Como a ambulância estava demorando, o acompanhante veio reclamar comigo. Respondi, educadamente, que não poderia fazer nada, que só restava esperar. Então ele pegou o chinelo e atirou em direção ao meu rosto. Só não acertou porque consegui desviar”, relata.

Tirinha por Solo Maia/ Reprodução

Problemas além dos pacientes

Para identificar esses casos de violência dentro da Medicina, Maia criou o blog Meus Nervos em 2011. Unindo a paixão por medicina e a habilidade de desenhar, ele encontrou nas tirinhas uma forma de expressão e alívio. “Antes de entrar na faculdade, eu via o médico como uma figura respeitada, admirada, bem remunerada, que trabalhava em condições dignas. No final do curso, já havia percebido que não era bem assim”, recorda o profissional. Era bem pior do que esperava.

O médico chargista também criticou a carga de trabalho de 120 horas semanais — o dobro do que é permitido pela lei 3.999, de 1961 — e cerca de 30 pacientes a serem atendidos no período de duas horas. Desistiu da residência em 2012. “Enfrentei Burnout, depressão e ansiedade. Engordei e cheguei a ficar hipertenso. A minha vida só foi melhorar quando saí da atenção básica, do SUS e dos prontos-socorros”.

O estresse gerado pelas situações de violência e as ameaças por parte de pacientes possibilitam o surgimento de diversas doenças, como as que Solon Maia adquiriu. O nome da Síndrome de Burnout, por exemplo, vem da palavra inglesa vinculada à ideia de “esgotamento”. A psicóloga Luciane Nepounuceno, pós-graduada em Psicologia Hospitalar, explica que o transtorno acomete os médicos de maneira silenciosa, quase que imperceptível. Dentre os sintomas, a sensação de isolamento, a competitividade excessiva e a perda de interesse nas atividades do dia a dia afetam não apenas o ambiente médico.

Daniel Ferrari, médico generalista que atende em prontos-socorros de São Paulo, é capaz de notar os efeitos do Burnout em menos de um ano de formação. Ele cita a inexistência de horas de sono ou repouso frente à pesada carga de responsabilidades como uma das principais causas para o transtorno. “Existe um tabu muito grande que é a dificuldade que os médicos têm de detectar o próprio sofrimento, em se verem como pacientes e terem que procurar ajuda”, comenta Nepounuceno sobre a possibilidade de desenvolver sintomas mais graves da síndrome. Estimular melhor qualidade de vida, meditação, psicoterapia, esportes e boa alimentação são algumas soluções para evitar o transtorno.

Longe de serem apenas números que colaboram com estatísticas, os casos de agressão se tornam relatos marcantes tanto na vida profissional quanto na pessoal de muitos médicos. A violência que ocorre dentro de hospitais e consultórios ainda é pouco retratada, apesar de colocar em risco a integridade dos responsáveis pelo bem-estar da população.