Em 12 de março, as aulas presenciais foram interrompidas. O hiato, que dura até hoje, começou assim para os casperianos de jornalismo do segundo ano…
A seguir, veremos um relato multifacetado dos casperianos que passaram pelo fatídico “comunicado dos quinze dias”, no início da pandemia de covid-19.
“Frente à possibilidade de os casos de contaminação por Covid-19 aumentarem nos próximos dias, a Direção e um comitê especialmente instituído para o acompanhamento da situação decidiram suspender as aulas presenciais em todos os cursos de graduação da Faculdade Cásper Líbero, a partir da noite de hoje, 12/3, até o próximo dia 20/3/2020, inclusive.”
Parece uma eternidade, mas faz pouco mais de três meses que a direção da Faculdade Cásper Líbero publicou esse comunicado em seu site. Os nove dias da previsão inicial sem aulas presenciais ficaram para trás. Pouca gente poderia imaginar que chegaríamos tão longe com o confinamento. Chegamos: 30 de junho, fim do primeiro semestre e data oficial de término das aulas.
O que sentimos quando recebemos a notícia do isolamento social? Relembrar esse momento parece olhar para um outro mundo. O Brasil contava 89 casos de covid-19 e zero mortes (o primeiro óbito ocorreu em 17 de março). Havia ainda Big Brother e a promessa de uma cervejada, com aglomeração e tudo. Incerteza, incredulidade, tristeza, às vezes alguma alegria, tédio e até alívio: a confusão de sentimentos aparece nos relatos de estudantes da Cásper convidados a revisitar o choque inicial. Os depoimentos abaixo são uma seleção de trechos de testemunhos produzidos por alunos e alunas do segundo ano do curso de jornalismo para a disciplina Teoria e Prática da Reportagem:
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Meu chá já estava frio. Virei-o em um único gole para poupar-me do sofrimento de beber chá morno. Como prometido, voltei à cama. Acordei duas horas mais tarde e fui fumar na varanda. São poucas as coisas que me satisfazem mais do que fumar na minha própria casa. Primeiro cigarro do dia sempre é o mais saboroso. Minha irmã tornou a criticar-me. Não em tom de ameaça mas como que brincando comigo, jocosa, naquelas falas agressivas e amigáveis, a quem se faz quando quer restituir uma relação danificada. Dessa vez não dei ouvidos. Ela sabe que tenho uma carta na manga, uma denúncia na ponta da língua caso diga aos meus pais que fumo. Respondi-lhe somente: “Você não tem que ir trabalhar não?”. (Gustavo Guimarães, pseudônimo por motivos de nicotina encoberta)
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Chegando no 41, o BBB já tinha acabado e eu só queria dormir e depois limpar toda aquela bagunça, passar um pano no chão, lavar aquela louça e arrumar a outra mala para voltar pro interior. Dessa vez não esqueci quase nada, trouxe o principal para esses próximos dias, meu notebook.
Pra mim tá sendo um processo, não teve o baque inicial, tenho pequenos surtos, aceitações e epifanias. Quando não estou dormindo, tô pensando como nunca (a cabeça tá a milhão faz um tempo), ou tendo breves discussões com o meu pai. A Cervejada acabou sendo adiada, penso muito nela também. (Angela Caritá)
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“E agora? O que eu faço? O que eu faço pra passar o tempo, o que eu faço pra não ficar ansiosa?”. Já estava absurdamente ansiosa.
Ansiedade por obter respostas, previsões e conclusões. Ansiosa para acabar aquilo que mal começou. Uma saudade que ainda nem tinha sentido, comecei a sentir. Saudade dos amigos, da rotina, da família, do namorado. Mas o que me matava de verdade era o fato de que não podia fazer nada pra mudar o que havia sido decidido. Eu teria que lidar com aquilo que menos tenho: paciência. E ainda está difícil. (Maria Antônia Bachiega Anacleto)
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Senti o cheiro de comida caseira no ar e invejei quem quer que fosse o cozinheiro. Na minha geladeira, só um pedaço de pizza, sobra da noite anterior. Aquela que havia sido a despedida da vida social, com cerveja e amigos, agora havia se transformado em bagunça para arrumar.
Fiz de tudo para acabar com o silêncio. Coloquei música, série, podcast. Por algumas horas, achei estar dentro do Big Brother. Ouvir a conversa dos participantes foi o mais perto que cheguei de realmente participar de uma. Mas o silêncio continuou e, conforme anoitecia, se tornava mais, mais e mais agonizante.
Em um impulso, peguei o computador. Parei. “Será mesmo? Sim. Eu não vou aguentar tanto tempo sozinha nesse apartamento minúsculo. Mas… Ah, f*da-se”. Comprei. Arrumei as malas. E saí pronta para fazer aquilo que no auge da rebeldia jurei que jamais faria: correr para a casa dos meus pais. (Gabriela Girardi)
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Acordei tarde, almocei o risoto da minha mãe, passei parte do dia no celular e deitada no sofá. Minha irmã e minha mãe fizeram exercícios de academia. De noite sentei pra escrever. Tudo parecia bem, na medida do possível, no meio do caos. Uma semana depois, sei que não me importaria de passar meses em casa de quarentena com a minha família, desde que todos os outros dias fossem iguais ao primeiro: com saúde, risadas, e o risoto da minha mãe. (Julia Martins)
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Com o cair da noite meus pais chegaram em casa, ambos desesperados com o futuro de seus empregos. “Dei férias coletivas pra todo mundo até dia 9 de abril, como eu vou ter dinheiro para pagar o salário de quatro funcionários se eu não vou ter receita? Como eu vou quitar as dívidas?” e eu via meu pai quase desmoronando na cadeira da cozinha. Estávamos atordoados, mas ainda assim tínhamos uns aos outros, nós três contra o mundo.
No primeiro dia eu ainda não sabia o que me aguardava, então me concentrei em imaginar o futuro, criando uma lista com tudo o que queria fazer assim que o período acabasse, parece que a vida estava sendo guardada para depois. Pelo menos, quando as aulas voltarem eu vou ter uma resposta na ponta da língua sempre que esquecer de fazer algum trabalho: “Desculpa, professor, achei que o mundo ia acabar”. (Giulia Luchetta)
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— Não é nada com você. Gosto muito do seu trabalho, mas é a decisão da empresa.
Ok. Ainda tenho dois cartões de crédito para pagar esse mês. E agora?
Foi tudo muito rápido. Muito de repente. Ontem era e hoje já não sou mais. Virei parte da estatística entre os mais de 12 milhões.
— Já pensou se esta for a última vez que nos vemos aqui?
Sim. Pensei. E, realmente, foi…, mas fico feliz que o mundo seja infinitamente maior do que aquela estação de metrô. Não acabou. A gente se vê! (Glaucia Galmacci)
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Ligo na T.I., atende o Felipe.
‘Oi, Felipe, tudo bem?’
Felipe não tá de bom humor. Felipe não entende o problema. Felipe pede pra desinstalar e reinstalar o programa. Já são quase 11:30.
‘Felipe, não é esse o problema.’
‘Qual seu sistema operacional?’ – ele pergunta.
Era Windows 8. Não roda. Precisa atualizar, cara.
Instalo o 10. Já são quase 13h. Instalo a VPN. Ufa.
Abro os e-mails de leitores. Nado num mar de SPAM, phishings, clippings, releases, sugestões de pauta, denúncias e perguntas. Pega as perguntas e bota no Excel. Pinta a planilha. Organiza que a gente vai respondendo.
E dá-lhe CTRL+C CTRL+V até umas 18.
Sonho com planilhas coloridas no dia seguinte, enquanto o despertador toca de novo. (Eduardo de Salles Marini)
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– Você pediu gás? – pergunta uma voz feminina, abafada pelo sono.
– Eu não pedi! Você pediu? – responde uma voz masculina de maneira perturbada.
– Eu não! – retruca mulher de maneira indignada – Vai ver quem tá no portão, então, amor!
Não os julgue! A necessidade de entrar em quarentena de maneira tão imediata acabou desorientando muitas famílias, não apenas esta. Além disso, acordar às 8 da manhã com alguém gritando no seu portão não é normal, ou agradável, em nenhuma situação, quanto mais em meio a uma pandemia global.
O homem levantou-se rápido como um foguete. Bocejava. Vestiu-se como pode e dirigiu-se ao portão desconfiado.
Que gás que nada! Uma loja de móveis, que tem na última sílaba de seu nome um som homófono ao do produto doméstico vendido em botijões, veio entregar, antes do prazo, camas novas, encomendadas antes das medidas de isolamento por aquela família.
A quarentena acabara de ficar mais confortável. (Álvaro Lopes Gadelha)