Mesmo após um século desde seu lançamento, o filme mais marcante do Expressionismo Alemão continua sendo significativo. Como as obras cinematográficas dessa vanguarda refletem o seu período histórico?
Em 1920, um filme exótico chegava aos cinemas alemães, contando a história do hipnotizador Dr. Caligari e do sonâmbulo Cesare. O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, foi um terror revolucionário, o mais marcante de uma vanguarda chamada Expressionismo Alemão. O movimento surgiu nas artes visuais, mas logo foi incorporado ao cinema, proporcionando obras inéditas.
As principais características do expressionismo são a valorização do grotesco – a estética do feio – e a transposição na obra da subjetividade do artista. No cinema alemão, essa premissa foi incorporada à temática, que se referia a questões profundas da mente humana. Com monstros sobrenaturais inseridos em uma estética que ignorava regras pré-estabelecidas, os expressionistas utilizavam imagens distorcidas e contrastes exagerados de luz e sombra a fim de criar uma atmosfera sombria e onírica. Para entender a subjetividade desses artistas retratada nas telas, é preciso compreender o momento da vida dos cineastas.
Frutos da Guerra
A geração expressionista passou pela Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914. A Alemanha entrou no conflito como um Império, governado por Guilherme II. Era uma nação jovem, unificada em 1871, e patriota. Cláudia Dornbusch, Doutora em Língua e Literatura Alemã afirma que “os jovens tinham vontade de ir pra guerra, mas voltaram desiludidos. Eles viram morte, derrota e lhes faltava perspectiva”.
Em 1916, a Alemanha se fechou, proibindo a importação de produtos estrangeiros, incluindo filmes, o que aumentou a demanda cinematográfica interna. O povo alemão gostou de se ver representado nas telas de cinema e, assim, essa indústria começou a se desenvolver no país. Mas a Guerra ainda causava estragos.
No último ano do conflito, 1918, o Imperador Guilherme II abdicou o trono. A Alemanha traída perdeu a Guerra e se encontrou em uma situação de humilhação internacional, pobreza, hiperinflação e desemprego. No pós-guerra, foi instituída a primeira república da nação, a República de Weimar. Era um período instável para o país. No auge dessa realidade, pode-se fincar o começo do Expressionismo Alemão no cinema, que retratava o sobrenatural como um escapismo.
A leitura expressionista da realidade
“Quando existe turbulência política de grandes proporções, o cinema começa a resgatar histórias perturbadoras e proféticas”, reflete Vanessa Bortulucce, Doutora em História Social. Esse era justamente o tema dos filmes expressionistas, como Caligari e Nosferatu (F. W. Murnau, 1922), que conta a história de um vampiro, que, assim como a Alemanha, era obrigado a viver nas sombras, isolado. “O cinema na década de 20 recuperou essas histórias para fazer com que as pessoas elaborassem a realidade”, ela continua.
Assim, esse período ímpar na história da Alemanha é marcado por angústia. “Imersos nessa realidade, os roteiristas Hans Janowitz e Carl Meyer escrevem Caligari: uma história sobre como é perigoso se lançar às cegas por um ideal que não é o seu”, diz Donny Correia, Doutor em Estética e História da Arte.
Caligari permite diversas interpretações, desde sua história até sua estética. O filme chama a atenção pelos cenários distorcidos, que foram desenhados em grandes telas. As próprias sombras foram pintadas, para haver mais contraste. Além disso, o ambiente é cheio de elementos estilhaçados, como a realidade que o povo alemão conhecia e que se quebrou. Já pela perspectiva da narrativa, que perpassa temas como loucura, sonambulismo, controle e questionamento da realidade, Caligari dá a impressão de que o mundo é um manicômio, de acordo com Cláudia. Talvez, para os alemães da época, a realidade de fato parecesse uma fantasia macabra.
Mau pressentimento
“Segundo alguns teóricos, previa-se em Caligari a ascensão do nazismo e de algum tipo de totalitarismo, com uma figura sombria no comando. Mas isso é questionável, já que o filme se destaca, também, pela sua estética peculiar”, complementa Cláudia. Para Vanessa, a hipótese da previsão do nazismo não é ideal: “Não acho que seja uma previsão, a figura do Hitler era pequena no começo dos anos 20. Existe uma sombra de algo ruim que vai assolar a Alemanha, que já estava vivendo algo muito negativo. Não é prever o nazismo, mas mostrar o incômodo e a incerteza do que virá.”
Assim, mesmo parecendo obras fictícias sem relação com a realidade, Caligari e os demais filmes expressionistas se conectavam com os alemães. Para Donny, o elemento sobrenatural das obras diz mais sobre os fantasmas de cada um dos telespectadores. Por isso que, para Vanessa, “a ficção não deve ser vista como mentira ou invenção, ela tem seu caráter ficcional, mas, às vezes, a ficção dá conta de coisas que a realidade não consegue compreender.”
Os filmes dessa vanguarda serviram para valorizar o cinema alemão, que começou a exportar suas obras nacionais e a encarar a sétima arte com mais seriedade. O estilo foi fundamental para a consolidação do gênero horror e noir e influenciou artistas como Alfred Hitchcock e David Lynch. Apesar disso, o Expressionismo Alemão rendeu poucos filmes, além de durar pouco. Pode-se estimar que o fim do movimento foi em 1924, quando os Estados Unidos lançaram um plano de ajuda econômica à Alemanha para ela se recuperar da 1ª Guerra e consumir os produtos americanos. Com isso, sua moeda se estabilizou, o desemprego caiu e a economia alemã começou a melhorar.
De modo contrário, a estética expressionista entrou em decadência. “Esse esgotamento é algo que acontece com todos os movimentos. Os alemães não querem mais ver aquela morbidez com que eles se identificavam, querem ver filmes sobre a nova realidade de estabilização”, conclui Donny.
O Expressionismo foi sucedido na Alemanha pelo Drama de Câmara (‘Kammerspiel’), produzindo filmes com uma temática cotidiana, como A Última Gargalhada (F. W. Murnau, 1924) e O Anjo Azul (Josef von Sternberg, 1930). Todavia, este movimento também não se estendeu muito no tempo, pois, a partir de 1933, quando Hitler tornou-se chanceler da Alemanha, o cinema do país adentrou uma fase muito mais sombria do que qualquer cenário expressionista jamais pôde vislumbrar.