Cracolândia, evasão financeira e medidas públicas: como ressignificar o centro de São Paulo - Revista Esquinas

Cracolândia, evasão financeira e medidas públicas: como ressignificar o centro de São Paulo

Por Ian Casalecchi e Juliano Galisi : outubro 6, 2020

Em meio ao abandono, o centro ainda mantém o charme parisiense com o qual foi idealizado e parece clamar pela volta de seus anos dourados.

Em meio ao abandono, o centro ainda mantém o charme parisiense com o qual foi idealizado e parece clamar pela volta de seus anos dourados

Esse era o centro de São Paulo na virada do século XX: um ambiente de comunhão social que se imaginava uma pequena Paris.

Contudo, os bairros centrais parecem distantes desse papel protagonista. Afinal, o que aconteceu nesse meio tempo? O que pode ser feito para reativar o protagonismo desses bairros? Que processo determinou o abandono da zeladoria pública pela região?

Problemas do centro

A história mostra que a região foi esquecida pelo poder público num processo que se intensificou a partir da década de 1960. A criação de frentes imobiliárias em locais mais distantes, como as avenidas Paulista e Faria Lima, é um dos principais motivos para o abandono da zona central da cidade.

Também são creditados como culpados os projetos viários que propunham uma solução em asfalto para o desenvolvimento urbano. Um exemplo é o Plano de Avenidas de Prestes Maia. A elaboração de mais avenidas para a cidade fez com que o centro deixasse de ser um ambiente de convívio e tornasse-se uma mera calha viária, perdendo sua função como espaço de uso público.

O Minhocão é outro exemplo de transformações na paisagem do centro da cidade em prol do plano viário. Inaugurado em 1971, sob o governo municipal de Paulo Maluf, o projeto ao longo dos anos se tornou um destruidor dos cenários por onde passara, como a Avenida São João. A desvalorização de outras regiões em seu entorno foi igualmente imediata.

Entrtanto, determinou-se em 2014 a desativação do Minhocão, mas apenas em fevereiro de 2019 que o prefeito Bruno Covas deliberou sobre seu futuro: ele será transformado em um parque suspenso aos moldes do High Line Park de Nova Iorque. Ainda se discute entre especialistas, governo e população local se esse é o melhor destino para a revalorização de seu entorno.

Muitas outras variáveis também corroboraram para que, ao fim dos anos 1990, as zonas centrais estivessem totalmente despojadas do papel de representação e símbolo da metrópole. A história da cidade, contudo, ainda está documentada pelas ruas da Sé e de outros bairros próximos que parecem esquecidos, hoje usados como espaços de paisagem.

 Revitalizar ou ressignificar?

Para pensar em alternativas, é necessário entender que o termo “revitalizar” indica necessariamente que algo está morto. “Não acredito que o centro esteja assim, pelo contrário, é um lugar muito vivo. A migração do dinheiro e dos investimentos públicos a partir dos anos 1970 para outras regiões, como a de Pinheiros, acabou por democratizar o local. Ele não está morto, apenas ocupado por pessoas de renda mais baixa do que aquelas que dominam a narrativa”, diz Carol La Terza, assessora de projetos da Rede Nossa São Paulo.

A coordenadora da mesma instituição, Carolina Guimarães, também concorda que o termo “revitalizar” pode não ser o mais adequado. “Acho que seria melhor ‘ressignificar’. Devemos lidar com a diversidade do espaço e potencializá-la, evitando apagar a história e cultura local”, diz.

Entretanto, reconhecer que o centro está vivo não é ignorar que ele deve ser fortalecido e ressignificado a partir de políticas públicas.

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Cracolândia

O atual cenário de abandono do centro é muito simbolizado pelo surgimento da Cracolândia nos anos 90.

O jornalista e membro do movimento A Craco Resiste, Daniel Mello, conta que a chegada do crack na capital paulista, ao contrário do que se imagina, não foi a causa do problema, mas sim uma nova fase da miséria já existente na região. “Ali já era um local de pessoas em situação de rua. Logo após a desativação da rodoviária [da Luz, em 1988], você via muita gente se abrigando naquelas carcaças, por exemplo. Nessa mesma época temos o surgimento do crack, que se populariza entre camadas mais pobres em situação precária.”

Sobre qual seria um modo eficaz de lidar com a Cracolândia, ele diz: “As políticas eficientes são as chamadas: ‘De redução de danos’. Nelas, se estende o usuário como um ser de necessidade e, a partir disso, busca-se supri-las, fornecendo moradia digna; tratando doenças; minimizando os impactos do uso de drogas a partir de orientação e insumos; e por fim uma possibilidade de renda dentro de suas limitações, com um emprego adequado a suas condições”, completa Daniel Mello.

A situação da Cracolândia relembra que, apesar de não ser possível afirmar a morte do centro, é impossível negar seus problemas.

Medidas públicas

Um exemplo que obteve bons resultados foi a transferência de secretarias e repartições públicas para os prédios históricos do Anhangabaú. A atual gestão, inclusive, está instaurando na região o Programa de Valorização do Centro, promessa eleitoral de Dória parcialmente concluída por Covas, que em 2018 iniciou as obras no Vale do Anhangabaú. Por outro lado, a construção da Sala São Paulo próxima a Cracolândia não obteve o mesmo sucesso e instituiu um forte contraste socioeconômico na região.

Nesse sentido, projetos para revitalizar a área em sua totalidade, como o Nova Luz, foram arquivados após anos de polêmicas e demonstraram-se como tentativas frustradas. Esse, em específico, sofreu com a repercussão negativa em torno do dispositivo jurídico das “concessões urbanísticas”, que consistiam basicamente em mecanismos legais para conceder aos entes privados ampla liberdade de atuação em lotes públicos, como são grande parte dos terrenos no centro.

As discussões a seu respeito perduraram por anos no âmbito administrativo da cidade, e debatiam se sua implementação abria margem para a iniciativa privada lucrar em cima de um espaço público. “Quem pode desapropriar um terreno é, unicamente, o Estado, que não pode transferir legalmente essa função a um ente privado”, diz La Terza.

Muitas das iniciativas públicas fracassaram por não considerar um projeto completo de desenvolvimento socioeconômico para a região, que deve conciliar características de bairro residencial e comercial.

Entregar à iniciativa privada a responsabilidade de criar novos alojamentos e restaurar os que hoje estão deteriorados – muitos deles, inclusive, são patrimônios históricos – pode ser perigoso. A justificativa é que isso acarretaria na evasão das classes sociais menos abastadas que moram no local, um processo conhecido como gentrificação.

O orçamento da Secretaria Municipal de Habitação, contudo, não permite excluir o segundo setor desse processo. “Qualquer medida de revitalização da região precisa passar por um processo público, conduzido pelo Estado e com ampla participação popular. Só assim garantimos que o investimento privado seja bem direcionado”, diz Guimarães.

Encontrar um equilíbrio entre os necessários investimentos privados e a supremacia dos interesses coletivos é um desafio para as próximas gestões, que continuarão a pensar no centro de São Paulo como uma problemática por um bom tempo.

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