Como o tempo afetou — e continua a afetar — esses espaços culturais
Luiz Gonzaga, 70 anos, lembra-se vividamente de sua primeira experiência cinematográfica, aos 4: ele acompanhou a família num passeio a um extinto cinema de rua no bairro paulistano do Belém para assistir ao filme Branca de Neve e os Sete Anões. “Na época, as exibições eram duplas. Não faço ideia de qual produção antecedeu o clássico desenho de Walt Disney, mas sei que foi muito desagradável. Chorei, não queria ficar naquela sala escura iluminada apenas por uma tela em preto-e-branco, mas depois me encantei pelas cores da animação.”
Esse foi apenas o primeiro programa dos muitos que Luiz viria a fazer a partir de então — um ano após o episódio, sair de casa, pegar o bonde até o cinema e assistir a um filme já havia se tornado uma rotina, um hábito sobretudo mantido aos fins de semana, quando eram exibidas as grandes e mais aguardadas produções. Até hoje, aliás, esse é um costume do aposentado, que só interrompeu as idas ao cinema quando os estabelecimentos fecharam em decorrência da pandemia.
A metamorfose dos cinemas
Luiz viveu de perto grandes transformações da indústria cinematográfica, momentos cruciais para entendermos o atual cenário do mercado exibidor hoje. O primeiro deles foi o surgimento da televisão. “Era coisa de gente rica — não era o caso dos meus pais. Era comum que as pessoas assistissem à televisão na casa de vizinhos. No meu caso, eu tinha que ir à casa de uma tia mais abonada.”
A comodidade de assistir a um filme dentro de casa, apesar de todas as limitações técnicas de uma televisão daquela época, já foi suficiente para reestruturar o mercado. Muitos daqueles cinemas de rua viram-se diante da necessidade de capacitar seus espaços para propiciar uma melhor e mais atrativa experiência ao espectador. Tudo isso fez parte de um processo de ascensão do cinema no país — havia cada vez mais salas de exibição, atendendo à igualmente crescente demanda por produções, relativamente bem distribuídas no quesito nacionalidade, de um público tomado pela euforia da chegada de uma tecnologia totalmente inovadora.
As “Cinelândias”
No interior, o usual era um único cinema por cidade; nas grandes metrópoles, como São Paulo, surgiram as Cinelândias, modo como as ruas que eram polos de exibição ficaram conhecidas e das quais Luiz foi assíduo frequentador. A versão paulistana dessas manchas urbanas foram representadas, num primeiro momento, pela Avenida São João e seu entorno, abrangendo boa parte do centro da cidade. Concentravam-se naqueles locais cinemas para todos os públicos, com salas de perfis muito variados — dos mais populares aos que exigiam a entrada “com paletó e gravata”, como conta Luiz.
O Cine Ufa Palace, rebatizado posteriormente como Cine Art Palácio, foi o primeiro dos grandes cinemas do centro paulistano. Inaugurado em 1936 na Avenida São João, foi projetado pelo arquiteto Rino Levi, responsável também pelo projeto do Cine Ipiranga, que iniciou suas atividades na avenida homônima em 1943. Os arredores da região não ficaram para trás: outro ilustre local de exibição, além dos exemplos citados, é o Cine Marrocos, localizado na Rua Conselheiro Crispiniano. O charme da construção, erguida em 1951, é indiscutível: os engenheiros João Bernardes Ribeiro e Nelson Scuracchio pensaram a decoração interna do cinema inspirando-se nas histórias de As Mil e Uma Noites.
O declínio da modalidade
Até a década de 1950, o centro de São Paulo era unanimidade para os cinéfilos: todas as salas — as melhores, pelo menos — estavam ali. Com a decadência econômica da região central, intensificada a partir da década de 1960, grandes polos exibidores se instalaram em outras áreas, como a Avenida Paulista. É símbolo desse declínio do centro a brusca transformação dos catálogos dos cinemas que resistiram às adversidades financeiras e voltaram-se para a exibição de filmes pornográficos. O Cine Jussara, por exemplo, hoje se chama Cine Dom José e, apesar da robusta arquitetura da edificação que nada sugere o conteúdo exibido pelas telas no seu interior, faz parte dos cinemas que seguiram esse destino. As novas preferências dessas salas, entretanto, não se explicam apenas pelo declínio econômico e social do centro paulistano. Vale aqui uma breve digressão sobre o espaço usualmente referenciado como Boca do Lixo.
A Boca é geralmente tida como um quadrilátero delimitado pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, São João, Timbiras e Protestantes. Compreendida entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, foi o endereço do submundo paulistano na década de 60, concentrando grande parte da prostituição e da bandidagem em seus arredores. A história da região, porém, não começa nos anos 1960: bem antes disso, nas décadas de 1920 e 1930, a localização estratégica dos bairros criou um ambiente propício para a instalação de renomadas empresas estrangeiras de distribuição de filmes como Paramount, Fox e Metro.
Anos depois, o local foi tomado por outras empresas menores do ramo e tornou-se de fato um reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados e prestadoras de serviços de manutenção técnica fizeram da região um dos principais polos cinematográficos do cinema brasileiro, com destaque para a rua do Triunfo. Os áureos anos de Cinema Novo correspondem também ao período de maior produção da Boca, que anualmente chegou a lançar em média oitenta filmes e totalizou, durante as décadas de 1960 a 1980, mais de 700 produções. Colecionou glórias nesse meio-tempo, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes conquistada pelo longa O Pagador de Promessas (1962). Grandes nomes passaram por lá, como Tarcísio Meira, Walter Salles, Carlos Reichenbach e Vera Fischer.
A decadência da produção cinematográfica, porém, foi inevitável, e pode ser explicada, dentre outras circunstâncias, pelo duvidoso destino que os próprios cineastas da Boca escolheram para as filmagens: o sexo explícito. Antes palco de chanchadas, pornochanchadas e faroestes, a Boca se voltou para o porno-erotismo quando já agonizava por seu fim. No momento em que a pornografia tomou conta dos lançamentos, produtores passaram a esconder seus nomes dos cortes finais e a partir dali o caminho decadente era irreversível. Hoje, o grande reduto de produção do cinema paulista é a Vila Madalena, que parece esquecer suas próprias origens discriminando a Boca.
São histórias como a da Boca do Lixo que sustentam uma identidade própria à cultura do cinema de rua. E não foi apenas no centro ou na Paulista que essa cultura se popularizou: esse foi um fenômeno generalizado em todo o Brasil. A partir da década de 1970, porém, metrópoles e cidades do interior sentiram, na mesma intensidade, o declínio dessa modalidade.
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A popularização de novas modalidades — diversas vezes mais cômodas e acessíveis — para consumir conteúdos audiovisuais foi determinante para a brusca queda no número de salas pelo país. Fenômeno semelhante ao descrito por Luiz sobre a década de 1960 e o surgimento da televisão, mas dessa vez em uma escala muito maior e irreversível — tanto é que, enquanto naquela oportunidade os cinemas conseguiram adaptar suas acomodações para a crescente competitividade do mercado, não foi assim que as coisas se deram nesse momento. O péssimo desempenho da economia nos anos seguintes — estamos, afinal, falando dos anos 80, a “década perdida” — também é tido como fator crucial para entender os números. É o que dados históricos do Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA) evidenciam.
O livro digital “Uma nova política para o audiovisual”, publicado pela Ancine em 2017, cita que o Brasil já teve um parque exibidor “vigoroso” e “descentralizado” na década de 1970. Na época, 80% das salas estavam em cidades do interior. Esses cinemas não estavam localizados em manchas urbanas, como as Cinelândias de São Paulo, mas preservavam, à sua maneira, um charme tão especial quanto.
Cinema no interior
O município de Bandeirantes (MS) é um daqueles que ainda preservam o estilo de vida pacato que se espera de uma pequena cidade interiorana. Os vizinhos se conhecem pelo nome e sobrenome, as casas não têm muros e muitas crianças ainda sabem o que é brincar na rua. Inúmeras mudanças — sociais, políticas e econômicas — ocorreram desde sua fundação até os dias de hoje, porém o bucólico espírito da cidade permanece intacto. Situação diferente de seu primeiro — e, até o momento, último — cinema.
O Cine Rocha não tem uma data de inauguração certa na memória de Nailo Soares Vilela, antigo prefeito do município. ‘‘Abriu em meados dos anos 70. Era uma sensação. O cinema tinha só uma sala e os filmes vinham da capital, aí sempre depois que passavam lá a gente assistia aqui.’’ Estudioso da cidade e sua história por paixão, Nailo relembra com saudade da época em que traziam inovações e tecnologia para Bandeirantes. Os filmes eram em preto e branco, as projeções à base de carvão, mas eram um grande passo e oportunidade de lazer para a pequena cidade.
Com menos de dez mil habitantes, Bandeirantes atualmente carrega apenas a lembrança do que um dia foi o maior ponto de encontro e divertimento dos munícipes. ‘‘Um carro passava pelas ruas anunciando a programação dos filmes e todas as sessões lotavam. Não lembro bem quanto custava a entrada, mas não era cara. Bandeirantes sempre tinha baile naquela época e a cidade inteira ia, mas sempre passava no cinema antes e ia direto para a festa depois.’’
Ao relatar o passado cultural da cidadezinha, fica claro, por parte de Nailo, o sentimento de abandono. O cinema, assim como os mercados e restaurantes da cidade, era um negócio de família. ‘‘Quando o dono do cinema faleceu, os filhos se mudaram para a capital e não demorou muito para o estabelecimento fechar de vez.’’ Depois desse período, nunca mais se viu tamanha novidade chegar à cidade. ‘‘Não era só cinema. Usavam o lugar de teatro, apresentavam peças. Era um espaço de cultura e diversão. Bandeirantes nunca mais teve nada assim.’’
O prédio do cinema foi comprado pela maçonaria e hoje em dia já não está mais de pé. Apenas entulho no que um dia foi um ‘‘espaço de cultura’’ resta na esquina da Rua Marechal Rondon com a Rocha Xavier. Se os habitantes de Bandeirantes quiserem ir a um cinema, são obrigados a pegar a estrada por 60 quilômetros até a capital, Campo Grande, onde podem escolher entre um dos três shopping- centers para assistir a algum filme em uma sala equipada.
Ascensão em novo formato
O gráfico que apresentamos anteriormente, na verdade, está cortado: o número de salas pelo país permaneceu em pleno declive até meados da década de 1990. A partir de então, esse índice subiu quase que anualmente, como veremos adiante. O que explica essa recuperação surpreendente do mercado exibidor, afinal? Os empreendedores do multiplex, formato de múltiplas salas em um mesmo espaço, reivindicam, com muito orgulho, a responsabilidade pela retomada.
Popularmente, chamamos a maioria desses espaços de “cinemas de shopping” — mas, tecnicamente, esse não é o termo mais preciso. Apesar de grande parte dos empreendimentos multiplex de fato estarem localizados em shopping centers, há alguns que se localizam nas fachadas de rua. Isso não os torna, entretanto, iguais aos cinemas de rua de que tanto falamos até aqui. Enquanto o modelo tradicional (de rua) era, em grande parte, um negócio familiar ou de pequenas proporções, o multiplex é marcado pelas grandes franquias e corporações.
Menos de uma dezena de empresas controla mais da metade das salas do Brasil. Esse grupo, composto por Cinemark, Cinépolis, UCI Cinemas, Cinesystem, Cineart, GNC Cinemas, Arteplex e Moviecom, é representado pela Abraplex — a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex. Na página institucional da associação, conta-se um pouco da história do modelo no território brasileiro:
No entanto, quando os multiplex chegaram, foi com força total. Na época, o parque de exibição estava deteriorado, era precário e insuficiente. Em 1995, o país atingiu o fundo do poço, com apenas 1.033 salas de cinema, o pior número da história da exibição dos últimos 50 anos. Somente a partir de 1996 o número de salas aumentou. Em 1997, o crescimento era tímido, com um total de 1.075 salas apenas, ou seja, havia 2 mil salas a menos se compararmos com o período áureo da exibição, em 1975, quando o parque chegou a ter 3.276 salas. Porém, entre 1997 e 2015 a curva foi ascendente e não parou mais de subir. Ao todo, ao longo desses 18 anos, foram abertas 1.930 salas.
O relato é corroborado pelos dados do OCA, que registram uma incrível ascensão no número de salas — e, consequentemente, em volume de bilheteria e público — a partir da segunda metade da década de 1990. É válido ressaltar como esse crescimento, de tão sólido, resistiu às crises de 2008 e 2015.
Os problemas do multiplex
Não há como negar o impacto positivo do empreendimento em território nacional. A indústria estava em crise e o desempenho foi tão bom que há muito tempo o Brasil não sabe o que é recuar em público e na quantia arrecadada em bilheteira. Podemos, contudo — e até devemos — questionar suas implicações. Enquanto o modelo anterior de cinemas de rua em pequenos negócios era muito mais descentralizado, fazendo com que mesmo cidades como Bandeirantes tivessem um estabelecimento do tipo no próprio município, o multiplex está altamente concentrado em regiões de melhor poder aquisitivo, e os dados proporcionais de salas por habitantes em cada uma das regiões brasileiras denotam uma clara distorção. Em 2017, por exemplo, o Sudeste mantinha uma relação de população por sala de 49.975 pessoas para cada tela. No mesmo ano, o Nordeste apresentou uma métrica de 116.155 para o mesmo índice.
Não podemos nos enganar: cinema, além de arte, sempre foi negócio. Todo estabelecimento comercial, obviamente, é refém dos mecanismos de mercado. A rentabilidade é necessária: não faz sentido empreender indevidamente numa região que não trará retorno proporcional ao investido. A questão é que esse atual modelo — que chegou ao Brasil em 1987, mas já dominava o mundo desde os anos 60 — configura-se como um oligopólio e impede a melhor distribuição de salas pelo país. A cultura do cinema de rua, além de nostálgica, parece muito mais saudável do ponto de vista mercadológico. Além de um catálogo bem mais diversificado, a competição entre as unidades favorecia os clientes de todas as maneiras possíveis.
A trajetória do cinema de rua como espaço cultural no Brasil está diretamente ligada à visão que se tem sobre cultura e arte. O espaço físico do cinema é, muitas vezes, afastado do status de museu, mesmo que ambos compartilhem um mesmo espaço ideológico, de apreciação e discussão sobre obras. Ou seja, por mais que as leis de mercado sejam fortes demais para serem contrariadas, a cultura não pode ser tida apenas por essa perspectiva. O cenário cultural brasileiro perdeu com o declínio dos cinemas de rua para a ascensão de multiplex, por mais que os números sejam ótimos e o setor por aqui conte com um dos cenários mais favoráveis do mundo. Mas há alguns estabelecimentos que se especializaram em fornecer alternativas para esse modelo dominante: surgem aqui os cinemas “de nicho”.
Nesta entrevista, Thássia Moro, atual coordenadora executiva do Petra Belas Artes, um dos mais tradicionais cinemas de rua de São Paulo, comenta sobre a jornada recente que o cinema passou durante a quarentena e como este formato sofreu um abalo, mas também resiste, assim como sempre resistiu, na busca por manter viva uma história e incentivar valores culturais.
QUAL FOI O MAIOR IMPACTO QUE O BELAS ARTES SOFREU COM A PANDEMIA?
O impacto foi de cem por cento em todos os cinemas. Nós tivemos um dos melhores começos de ano dos últimos tempos e então veio março, que geralmente é uma época com queda de público, mas com a pandemia tudo fechou. Nós fomos o primeiro cinema a fechar na cidade e a renda vai a zero. Ninguém pensou que fosse durar tanto tempo. Todo mundo ganhou férias, mas foi um dia de cada vez, um mês por vez. O drive-in foi o que segurou as pontas e nos trouxe até aqui. O nosso streaming também, nós somos o único cinema com um streaming de nicho, mas é um projeto custoso, ele não dá lucro, apenas se paga. A gente ainda está ‘‘patinando’’, mas precisávamos reabrir para dar fôlego. As previsões de melhora são apenas para o ano que vem.
VOCÊ ENXERGA O STREAMING COMO UM CONCORRENTE DO CINEMA TRADICIONAL?
Não, de hipótese alguma, eles são complementares. Por exemplo, nós temos o streaming e com ele alcançamos um público que não é de São Paulo, não tem fácil acesso ao cinema e que quer consumir aquele tipo de curadoria que nos outros streamings a gente não encontra. O streaming vem para agregar, porque a grande massa prefere ir ao cinema. A tela grande é diferente, nada chega perto do cinema.
QUAL SUA VISÃO DAS DIFERENÇAS ENTRE A EXPERIÊNCIA DOS CINEMAS DE RUA E CINEMAS DE SHOPPING?
Eu acho que são públicos diferentes. O cinema de rua, não só o nosso, tem essa característica da curadoria ser exemplar. Costumamos dizer que o Belas passa filmes importantes para a história do cinema. Os cinemas de shopping, mais de grande massa, nem sempre dão espaço a estes filmes. Existe o público que gosta de blockbusters, mas também tem quem gosta de algo mais cult, de arte, que gosta daquela experiência do cinema mais antigo sem perder a qualidade. Mas são públicos capazes de frequentar os dois espaços. Eu mesma vejo filmes no Belas Artes, na Reserva, no Itaú, e também no Cinemark, no Cinépolis. Há uma diferença de preço que impacta muito, o Belas é o cinema mais barato da cidade, mas existe demanda para todos os públicos.
EM QUE ASPECTOS O CINEMA DE RUA SE MOSTRA SOCIALMENTE IMPORTANTE?
O cinema de rua é importante pra cidade, pro cinema, para as distribuidoras, pro cinema independente, para a formação social. Nós temos um projeto educativo em parceria com a prefeitura que leva pessoas para irem ao cinema, muitas vezes pela primeira vez, muito importante para a disseminação do gosto pelo audiovisual. Além de ser importante para formar o público, o cinema de rua é importante para resgatar uma história. O Belas Artes tem sessente anos de história, já pegou fogo, já fechou, reabriu, perdeu patrocínio, mas está brigando para ficar em pé, ele tem uma interface com a história de São Paulo. O cinema de rua é um cinema que resiste.
COMO O BELAS ARTES TEM TENTADO ATRAIR UM NOVO PÚBLICO PARA MANTER VIVA A TRADIÇÃO DO CINEMA DE RUA?
Através do streaming, com uma curadoria diferente, o ingresso mais acessível, que, inclusive, às segundas-feiras quem apresenta carteira de trabalho, estando empregado ou não, recebe desconto. É questão de atingir uma parcela da população que não vai ao cinema. A gente fala como se muita gente fosse ao cinema toda semana, mas não é tão comum. Se o cinema não for acessível, seja online ou fisicamente, não conseguimos formar esse público e atrair pessoas. O Belas não é apenas um cinema, ele é um espaço cultural, nós abrimos as portas para vários tipos de artes e atividades culturais, então assim formamos uma memória para que várias pessoas se lembrem do Belas com carinho e possam voltar.
QUAL SUA OPINIÃO SOBRE O LEGADO DO CINEMA DE RUA E A IMPORTÂNCIA DE DEFENDER SUA EXISTÊNCIA?
O cinema de rua é um retrato do audiovisual e do Brasil em si. Muito mais do que um projeto que dê lucro, os cinemas de rua contam um pedaço da história da cidade. Eu sou do interior de São Paulo e minha cidade tinha um cinema de rua que fechou e as pessoas mais velhas, que o frequentavam, se lembram dele com uma memória afetiva gigante. Cinema é cem por cento cultura e tem todo um papel de trazer diversidade e acesso. Quando só há um tipo de produto, o que dá lucro, isso limita o crescimento da função do cinema em si. Existem muitas variáveis, mas o cinema de rua é com certeza muito importante para uma memória que cada vez perdemos mais. Ter um cinema por perto é uma conquista para manter um pedaço da cultura do Brasil que está se esfacelando cada vez mais.
Streaming e cinema
A coordenadora do Petra Belas Artes também destaca questões muito interessantes para aprofundarmos essa discussão. O embate entre streaming e cinema não é de hoje, mas a pandemia intensificou muito a relevância desse conflito. Há quem tema que, catalisado pelas atuais circunstâncias, o conteúdo de vídeo digital sob demanda cresça como nunca a partir de agora, talvez até roubando o espaço do cinema físico. Como Thássia destaca, essa parece ser uma perspectiva muito radical — mas as coisas tendem a se transformar a partir de agora. Sobre o tema, vale lembrar o panorama histórico dessas plataformas.
Em meados dos anos 2000, a criação de serviços de streaming, com destaque para a Netflix, foi surpreendente e inovadora para o setor audiovisual. Em questão de poucos anos, a empresa — e o setor como um todo — já tinha ocupado o espaço das videolocadoras, serviço para o qual ela foi originalmente pensada, vale lembrar. A ascensão desses programas foi tomando proporções inimagináveis e continua causando uma grande transformação no mercado cinematográfico. Chegou-se a um estágio, inclusive, em que muitos serviços são criados exclusivamente para um nicho. Essa especialização do catálogo não é o único fator que pesa a favor do cliente. O uso de algoritmos para selecionar o conteúdo ideal ao espectador, apesar das polêmicas, é um dos grandes responsáveis pelo sucesso das plataformas. Combinado ao conforto de assistir filmes no próprio lar, seja por meio da televisão ou computador, o vídeo digital sob demanda é cada vez mais atrativo ao grande público que ver o filme na telona do cinema. Nada pode, porém, substituir o ato de ir assistir a um filme numa sala de exibição especializada.
Luiz, o cinéfilo do começo desta reportagem, destaca um ponto importante sobre esse dilema. “Decidir ir ao cinema é uma postura totalmente diferente. Assistir a um filme coletivamente é uma experiência muito mais solene do que vê-lo em casa”, relata. “É crucial que as facilidades do streaming não determinem a perda desse hábito tão importante.”
Preservando a ida ao cinema
Como, então, preservar esse ato cultural tão importante? As conveniências das plataformas de conteúdo digital e a concentração de salas em espaços geográficos reduzidos — e distantes de muitas regiões — parecem conspirar contra a ida ao cinema. É aqui que surgem iniciativas como o Circuito Spcine, voltado para a criação de uma rede de salas públicas principalmente nos locais não atendidos pelo setor privado. Além de garantir mais telas para produções nacionais, o projeto tem como objetivo democratizar o acesso ao cinema — por vezes negligenciado pelo avanço de salas multiplex, pelos motivos que já listamos.
Para entendermos os objetivos e conquistas dessa política, conversamos com Dilson Neto, coordenador da área de difusão da Spcine, a empresa de cinema do município de São Paulo.
Questionado sobre o propósito central do Circuito, Dilson responde: “Ele (o Circuito Spcine) garante o acesso ao cinema daquelas pessoas que não possuem condições econômicas de pagar o caro ingresso das grandes redes de salas”. Dilson ressalta, ainda, que o Circuito é a maior política pública do gênero em rede nacional. “Há alguns projetos semelhantes em prefeituras do Ceará, mas em escala muito menor.”
Não se trata de um objetivo primário do projeto, mas essa rede de salas “populares” sob administração pública permite também uma melhor difusão de produções brasileiras, questão por vezes negligenciada pelos estabelecimentos que operam sob comando de grandes conglomerados de cinema. Na página institucional da iniciativa, inclusive, esse é um dos destaques: “O intuito do projeto é democratizar o acesso ao cinema e garantir mais telas para a produção nacional”.
“O cinema é capaz de expressar nossos sonhos coletivos como nenhuma outra mídia. E esse é seu significado.”
A declaração acima é de Werner Herzog, renomado cineasta alemão — a ideia expressada, porém, está muito distante da sua autoria. Sabe-se pouco a respeito de quem foi o primeiro a definir o cinema como “sonho coletivo” — alguns falam em Federico Fellini, mas não há consenso sobre a questão. A indefinição em relação a quem atribuiu essa perspectiva, porém, somente a torna mais poderosa: desde suas origens, o cinema era visto como a concretização de um imaginário coletivo. Foi essa noção que uniu produtores e espectadores no que se tornou a mais popular das artes — a mais charmosa de todas, como se tende a nomeá-la.
A história da arte sempre foi produto e produtor da história humana, e a bicondicional é igualmente válida. O cinema, como arte, enquadra-se também nessa definição. Traço intrínseco às historiografias, a metamorfose fez-se presente na evolução da Sétima Arte — e ela bravamente resistiu. Por mais que os termos pareçam abstratos, falamos aqui de algo muito próximo de nosso cotidiano. O cinema de rua como figura de estudo reflete toda uma trajetória humana que permite relacionar as diferentes facetas da sociedade. Estoicas, essas salas resistem ao tempo e às pressões econômicas — não sabemos, porém, até quando.