Ex-ministro Mandetta aborda relação conturbada com Bolsonaro e outros assuntos presentes em seu livro
ATUALIZAÇÃO: Texto atualizado em 10 de maio de 2021 às 18 horas para acrescentar a resposta de Mandetta a respeito do decreto da pandemia de covid-19 pela OMS.
Em abril de 2020, a crise sanitária que acabara de chegar ao Brasil se agravava. Jair Bolsonaro adotava desde o mês anterior um tom abertamente cético contra políticas restritivas para conter a covid-19. Já seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defendia o isolamento social, e era publicamente desautorizado pelo presidente (e vice-versa).
Ao fim da segunda semana de abril, a permanência de Mandetta na pasta tornou-se insustentável e o ex-deputado do Mato Grosso do Sul (MS) foi demitido. Cinco meses após sua saída, em setembro de 2020, o ex-ministro publicou, pela Companhia das Letras, Um Paciente Chamado Brasil. O livro de Mandetta traz um relato pessoal e detalhado dos conflitos internos do gabinete ministerial e das tensões entre arbítrios políticos e questões científicas. Em entrevista a ESQUINAS, Mandetta fala sobre o planejamento da obra e os temas nela abordados.
ESQUINAS O conflito entre a ética médica e as vontades políticas do presidente é a tônica de Um Paciente Chamado Brasil. A obra foi escrita pouco menos de 5 meses após sua saída do Ministério. Por que escrever no calor do momento e não aguardar um distanciamento histórico da situação?
O distanciamento histórico tem de se debruçar sobre obras escritas no calor do momento, desde as crônicas às teses que ainda estão por surgir. No caso do livro, trata-se de um relato que precisava ser escrito naquele tempo. São as minhas impressões imediatas, carregadas muitas vezes de passionalidade. Só foi possível lançá-lo com essa agilidade pois tive o auxílio de Walter Machado, jornalista que me ajudou na compilação das anotações. Fiquei muito recluso após sair do comando da pasta e tive tempo para escrever.
ESQUINAS O comportamento dúbio de Jair Bolsonaro, concordando com o senhor em particular e discordando em público, chama atenção nesse relato fresco da relação entre ministro e presidente. O que explica essa dualidade?
É uma dualidade própria do nosso tempo, em que mundo real e ambiente virtual coexistem. O presidente, parece-me, vem administrando o Brasil com base nesse segundo universo, sendo constantemente influenciado pelo número de likes e aplausos nas redes sociais.
Temos na neurologia a palavra esquizofrênico, que deriva de uma formação grega composta por schízo, divisão, e phrén, percepção. Essa “percepção dividida” explica o comportamento do presidente, que oscilava entre esses dois mundos e, quando confrontado com recomendações científicas, típicas da realidade, se resguardava no negacionismo do ambiente digital.
ESQUINAS Em determinada passagem do livro, o senhor revela que as coletivas de imprensa diárias foram o método encontrado pelo ministério da Saúde para comunicar as questões relacionadas ao coronavírus à população. Mandetta, como o senhor enxerga o relacionamento entre mídia e governo durante a pandemia?
Quando você tem uma situação de estresse profundo, como é a calamidade sanitária que vivemos, a população fica ávida por informação de qualidade. Diante disso, os governos devem dispor à população informações para que a sociedade organize as suas linhas de defesa, que começam dentro das casas e dos núcleos familiares.
O nosso governo federal – no caso, o presidente – não queria fazer uma campanha institucional, com publicidade em rádios, televisões, outdoors. Ele não quis explorar nem mesmo mídias como blogs na internet. Para nós da Saúde, porém, era fundamental diante de uma crise sanitária ter um canal de comunicação com a população. Precisávamos divulgar informações confiáveis para as pessoas, pois faltam filtros de credibilidade na internet e, se não ocupássemos um espaço como aquele, as fake news dominariam.
Foi a imprensa que levou as informações necessárias sobre o novo vírus para os rincões do Brasil, disponibilizando material em todas as mídias possíveis. A estratégia de massificar a comunicação do Ministério, a meu ver, conseguiu reduzir os danos do que chamam de primeira onda. Essa postura fez muita falta depois. O próprio governo federal produziu material inadequado e colaborou com a desinformação.
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ESQUINAS Parte de seu processo de fritura na gestão do Ministério da Saúde se deu por constantes aparições na imprensa a partir das coletivas. O senhor acredita que seus sucessores temeram se posicionar na mídia com receio de se sobreporem à figura do presidente Bolsonaro?
Não acho que eles ficaram tementes. Acho que entraram justamente para fazer isso, principalmente o general [Eduardo Pazuello], que assumiu o comando jurando cumprir essa agenda de retirar o ministério da Saúde do enfrentamento da covid-19.
Ele fez parte de um plano político: ninguém do Planalto se manifesta sobre o vírus, abrindo espaço para o presidente apresentar-se como crítico dos governadores e dos prefeitos. Para aqueles que levam a sério os valores humanísticos da medicina, é impossível fazer esse pacto de silêncio ou de comunicação equivocada, citando cloroquina e outros tratamentos sem eficácia comprovada. Pazuello é o primeiro não-ministro da Saúde da história da pasta.
Chegou-se ao nível de precisarmos de um consórcio de veículos de imprensa para a compilação dos dados da covid, uma vez que o Ministério estava com a credibilidade totalmente arruinada. Foi uma gestão a ser lembrada como estudo de caso do que não fazer, em termos de comunicação, durante uma pandemia.
ESQUINAS Podemos esperar mais transparência na gestão do recém-chegado Marcelo Queiroga?
Ele vai ter que se entender com a própria biografia. Vai ter que escolher entre ser lembrado como um pária da Saúde pública ou estar do lado daqueles que deram o melhor de si para salvar vidas na pandemia. Eu torço para que as pessoas escolham o lado certo e espero que ele faça o que há de ser feito. Precisamos lembrar que o ministro tem um presidente muito negacionista ao lado. Enquanto o chefe do executivo federal continuar com essas atitudes, podemos colocar até mesmo o prêmio Nobel de medicina no comando da pasta que ainda assim teremos dificuldades.
ESQUINAS Em janeiro, quando já se sabia sobre um novo vírus no sudoeste chinês, o senhor estava em excursão internacional e pôde presenciar as primeiras articulações sobre o Sars-CoV-2. A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia de modo tardio?
Tome como exemplo a questão do vírus zika. Logo após detectarmos a relação entre a circulação do vírus e um índice acima do esperado de microcefalia em recém-nascidos, avisamos a OMS e logo foi decretado por esse organismo internacional uma emergência sanitária mundial. A celeridade desse processo deveu-se também à nossa prontidão em abrir os dados e convocar a autoridade global de saúde. Esse rito não se repetiu agora com a China e o Sars-CoV-2.
A China demorou demais para se pronunciar sobre o assunto, a ponto da nossa equipe, na figura do Wanderson Oliveira, ter captado o ruído do vírus e notificado a OMS antes mesmo de eles se posicionarem sobre o assunto. Mesmo após o reconhecimento oficial da China, o alerta sanitário foi equivocado, pois se restringiu à província de Wuhan.
ESQUINAS Para o futuro, há outras publicações em mente ou já em desenvolvimento?
O que temos planejado é um perfil histórico completo do Sistema Único de Saúde (SUS), contemplando todos aqueles que contribuíram com a sua estruturação no País, desde as requisições na Constituinte até sua administração mediante uma pandemia. Há muitos focos a serem trabalhados, como as relações do sistema com o pacto federativo e a iniciativa privada. Precisamos falar também sobre o desenvolvimento nacional de tecnologia voltada para a saúde. Será uma obra de mais fôlego e com mais pessoas envolvidas na compilação de informações.