Docentes de quatro faculdades paulistas analisam a pouca atenção da imprensa aos protestos de 29 de maio. A reportagem faz parte do projeto “Observatório da Pandemia”, da Faculdade Cásper Líbero
Nas ruas, manifestações em 213 cidades brasileiras, 14 no exterior, centenas de milhares de pessoas no maior conjunto de atos contra o governo de Jair Bolsonaro. Nas TVs, sites e jornais, uma cobertura tímida. As manchetes de O Globo (“PIB reaquece, e empresas desengavetam R$ 164 bilhões em projetos”) e O Estado de São Paulo (“Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”) viraram símbolos de desconexão com a realidade e viralizaram nas redes. Enquanto isso, a imprensa internacional destacou a ação. “Dezenas de milhares de brasileiros marcham para exigir o impeachment de Bolsonaro”, dizia a manchete do site do jornal britânico The Guardian. Le Monde, BBC e outras referências mundo afora repetiram o destaque.
📰 Manchetes de hoje (30.5.2021)
• @folha: Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país
• @Estadao: Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office
• @JornalOGlobo: PIB reaquece, e empresas desengavetam R$ 164 bilhões em projetos pic.twitter.com/X2jbxmvAX0— Jeff Nascimento (@jnascim) May 30, 2021
Jornalistas criticaram a grande mídia por ocultar as manifestações. Pelo prisma da teoria jornalística, professores universitários compartilham da mesma opinião: a cobertura poderia ter sido muito mais ampla e incisiva. A chave são os chamados “critérios de noticiabilidade” — ou seja, os aspectos que indicam a tendência de um fato virar notícia.
Fabio Venturini, Integrante da comissão de ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, doutor em História e professor do campus de Osasco da Unifesp, enumera algumas dessas características técnicas: interesse público, amplitude do tema (a quantidade de pessoas impactadas), atualidade e proximidade (geográfica ou simbólica com o fato). “Os protestos preenchiam esses critérios. Ao deixar de noticiá-los, alguns veículos decidiram que a sua própria linha política era mais importante do que critérios técnicos, profissionais e éticos do jornalismo”. E completa: “Bolsonaro não precisou dar golpe para alguns jornais praticarem censuras com os atos da esquerda”.
A comparação com os atos pró-impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff é eloquente. As manifestações receberam amplo destaque na grande mídia, com fotos das ruas tomadas de verde e amarelo estampando capas de jornais e inspirando horas de cobertura especial na TV. Sobre o silenciamento a respeito dos protestos do #29M, Rodrigo Ratier, jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero, enxerga o padrão dos veículos em não favorecer a oposição envolvida nos atos, sobretudo o ex-presidente Lula, possível candidato às eleições de 2022. “Não é um ato isolado. Olhando o conjunto de editoriais, fica evidente que o Estadão e O Globo, por exemplo, apoiaram o impeachment e desde então historicamente se posicionam contra a possibilidade de retorno do PT ao poder.”
Para Ivan Paganotti, professor do programa de pós-graduação em comunicação social da Universidade Metodista de São Paulo, a falta de uma ampla cobertura das manifestações revela “insensibilidade” da imprensa em dar um destaque maior aos atos. “Não quer dizer que esses veículos estão tentando proteger o governo ou desmerecer a manifestação: é só uma forma de jornalismo produzida no automático”. Paganotti, porém, alerta que essa prática pode causar consequências prejudiciais “O público pode, por exemplo, rejeitar essa falta de cobertura e ampliar as críticas hoje direcionadas à mídia.”
Já Venturini aponta ainda a discordância entre a imprensa tradicional e a agenda autoritária de Bolsonaro, mas pleno acordo quanto ao programa econômico do ministro da Economia, Paulo Guedes. Segundo o docente da Unifesp, a escolha de não noticiar as manifestações, mas ao mesmo tempo criticar o presidente Bolsonaro, abre margem para tentar construir uma terceira via política. “A mídia precisa encontrar um jeito de manter a agenda econômica bolsonarista, mas sem o Bolsonaro. Se as duas opções forem Bolsonaro e Lula, eles tentarão mais uma vez derrotar o candidato do Partido dos Trabalhadores”, opina.
Para os professores de jornalismo, ocorrências como essa repõem a questão do olhar sobre a mídia tradicional. Duramente criticada pela academia, a chamada “grande imprensa” passou a ser defendida como um recurso confiável para a obtenção de informações em um contexto de fake news e desinformação. Para André Santoro, coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a discussão sobre a postura da mídia na cobertura política deve permear toda a graduação.
“Um curso de jornalismo precisa ter elementos para criticar o que a mídia faz, não no sentido depreciativo, mas para abrir espaço para diversas análises sobre o que acontece nas redações”, afirma Santoro. Venturini completa dizendo que, muitas vezes, é preciso olhar para além das redações em busca de respostas. “O problema está em quem banca o jornal, em quem espera que o jornal cumpra sua agenda política”, finaliza.