Professor explica como a suspensão das patentes poderia impactar não só o ritmo de vacinação, mas a economia e tecnologia
Desde o final de 2020, um debate encabeçado pela Índia e África do Sul, apoiadas por mais de 110 países em desenvolvimento, paira sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o mundo: a quebra de patentes de medicamentos e vacinas contra a covid-19.
Depois de ser aprovado no Senado, o Projeto de Lei 12/2021 está em tramitação de urgência na Câmara dos Deputados e ainda precisa passar pelo presidente da República. Ele permite a produção de insumos relacionados ao combate à pandemia por laboratórios e centros produtivos brasileiros. De autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS), o projeto visa liberar para domínio público as informações de produção dessas substâncias, que antes estavam protegidas pelos direitos de propriedade intelectual.
Carlos Portugal, professor do Departamento de Direito Comercial da Universidade de São Paulo (USP) e sócio-fundador do escritório PGLAW, explica que, quando asseguradas pela proteção jurídica, indústrias farmacêuticas detentoras dessas tecnologias têm o monopólio da produção. Assim, as empresas têm retorno financeiro dos investimentos feitos para o desenvolvimento das inovações.
Apesar de o estímulo financeiro à inovação ser importante, o professor aponta que, no campo da saúde, a proteção patentária leva a um aumento de preços de medicamentos e vacinas para acima dos praticados no mercado. Consequentemente, parte da população mundial não tem acesso a essas tecnologias, cenário que impacta a compra de vacinas para o combate à pandemia, em especial por países em desenvolvimento. “É muito triste a gente identificar que, para manter esse sistema jurídico de proteção das patentes, a gente tem que excluir uma parcela da população mundial da possibilidade de obter as vacinas”, analisa Portugal.
Quebra de patentes no Brasil
Para o Brasil, que atingiu a marca de 500 mil mortos pela covid-19, o rápido avanço da vacinação é fundamental para evitar mais mortes e, possivelmente, novas mutações do vírus. No entanto, “pelos estudos que o Grupo de Direito e Pobreza fez, as estimativas mais realistas mostram que nem em 2024 o mundo vai ter capacidade de produzir vacinas de forma a permitir uma vacinação global para o combate à covid”, afirma o professor.
Ele explica que “o mundo vai ficar dependente dessas vacinações ao longo de muitos anos. E quanto mais tempo a gente demorar para realmente atingir um patamar de produção de vacinas para o mundo inteiro, mais oportunidades para o surgimento de novas variantes e de novas ondas pandêmicas.”
A desigualdade na compra de vacinas entre os grupos de países do Norte Global – aqueles com valores mais altos de IDH – e do Sul Global – os com índices de IDH mais baixos – foi pesquisada no estudo comentado pelo professor.
O estudo Report on Access to Covid-19 Vaccines (Relatório de Pesquisa sobre o Acesso às Vacinas de Covid-19), foi produzido pelo Grupo Direito e Pobreza, núcleo de pesquisa da Faculdade de Direito da USP. Com o objetivo de analisar o acesso à compra das vacinas mundialmente, a pesquisa apontou o impacto que a suspensão das patentes de vacinas contra a covid-19 poderia ter causado na redução da mortalidade, em especial no Brasil.
O gráfico a seguir, produzido pelos pesquisadores, destaca que poderiam ter sido salvas pelo menos mil vidas por dia no País em abril de 2021 caso as patentes das vacinas tivessem sido suspensas aos países em desenvolvimento.
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Consequências da suspensão das patentes
Além do impacto na redução do número de mortes pela covid-19, a suspensão das patentes poderia proporcionar uma retomada econômica mundial. Com o avanço da vacinação em suas populações, países desenvolvidos passam a reabrir suas economias enquanto as nações em desenvolvimento continuam estagnados pelas consequências econômicas da pandemia.
De acordo com Carlos Portugal, “sem a volta do consumo também dos países mais pobres você não consegue continuar a atividade econômica dos países mais ricos. Então, além de haver um aumento da desigualdade global a partir disso, os ricos estão ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres”.
A quebra temporária das patentes de vacinas também estimularia a transferência de tecnologia referente à produção desses imunizantes, alavancando o desenvolvimento tecnológico de centros produtivos ao redor do mundo, e principalmente em países em desenvolvimento.
Dessa forma, segundo o professor, estaríamos caminhando de maneira mais rápida rumo a um patamar de produção que pudesse atender as necessidades globais. “Cada dia que você adia essa discussão, você está adiando investimento para criar os parques industriais para produzir as vacinas. Cada mês que a gente atrasa, a gente está adiando a produção de vacinas e o atendimento de toda a população mundial em anos”, alerta Portugal.
Quebra de patentes para as farmacêuticas
À primeira vista, a quebra das patentes pode ser vista como prejudicial às empresas farmacêuticas que desenvolveram tais tecnologias. Porém, o professor afirma que elas também poderiam obter retorno financeiro dessa modalidade comercial. “Por meio de mecanismos como o licenciamento compulsório, você conseguiria dar uma rentabilidade muito razoável para essas empresas, mas com uma produção muito maior”, explica.
“O problema que a gente tem hoje é: as patentes adotam um regime monopolista que faz o preço ficar mais alto, reduzindo a produção. Isso já é imoral por si só dentro de um ambiente de pandemia global”, pontua Portugal.
No Brasil, a suspensão das patentes permitiria uma obtenção mais rápida de vacinas produzidas por laboratórios que não possuem a autorização, mas sim a capacidade tecnológica, para produzi-las. Além disso, a decisão também incentivaria o preparo e o investimento tecnológico em institutos científicos brasileiros, como o Instituto Butantan e a Fiocruz, para que produzissem vacinas sem atender aos direitos de propriedade industrial das empresas que as desenvolveram, ou seja, produzindo mais e com custos menores.
Tendo em vista o cenário brasileiro em que vários estados tiveram que negociar seus próprios contratos de compra de vacinas sem o apoio do governo federal e, principalmente, o atraso na vacinação da população, Portugal considera fundamental a quebra de patentes para o estabelecimento de um ritmo adequado da imunização para uma consequente retomada da economia brasileira. “Cada dia que a nossa economia não reabre em razão da falta de vacinação, sendo que as outras economias centrais estão se abrindo, a gente está perdendo uma posição dentro da economia global, que não necessariamente a gente consegue recuperar. Além disso, a pandemia gera danos de longuíssimo prazo na economia, principalmente porque ela tem impacto muito grave no processo educacional como um todo”, finaliza o professor.