Paraense mãe de dois filhos suportou um casamento em que era abusada de diversas maneiras, e que só teve fim com a descoberta da homossexualidade do marido
Ovos. Frutas. Iogurte. Uma lista básica de itens, existentes na casa da maioria dos dois milhões de habitantes de Belém do Pará. E também presentes na cozinha lajotada da casa onde vivia Dioneide Barbosa, 49 anos, o ex-marido e os dois filhos – Manu* e Jorge* –, no centro da capital paraense. A diferença era que esses alimentos estavam fora do alcance da mulher; haviam sido proibidos para ela e o filho.
De pele morena, pálida, cabelos acinzentados e um semblante frágil, ela conta – falhando ao tentar segurar as lágrimas que, por um mês, o ainda marido, 14 anos mais velho, proibiu que eles comessem os alimentos disponíveis na casa. Nesse período, fim de fevereiro, a filha já havia sido expulsa de casa pelo pai e passou a morar na casa do namorado. A mãe, que convivia mais uma vez com a depressão, teve o quadro agravado pelo afastamento da filha.
“É que machuca, sabe? Tirar o alimento é de uma crueldade muito grande”, diz Dioneide. Agressões verbais contra ela também eram constantes. “Ele falava pra eu me matar, me jogar na frente de um carro. Falava que ninguém ia perceber ou sentir minha falta”, relata.
O marido também a havia proibido de tomar suas medicações controladas, essenciais para seu tratamento da tireoide, que teve início em 2017 e se revelou como suspeita de câncer. Hoje, 35 quilos mais magra do que quatro anos atrás, Dioneide tem novas dificuldades de saúde batendo à sua porta. Mesmo estando fraca, ela era responsável por limpar a casa, ir ao supermercado, cozinhar e ainda cuidar do ex-companheiro – quase 100 quilos mais pesado.
Fuga de cativeiro
A junção de diversos eventos recentes – implicância com os filhos, fragilidade de saúde, transtornos pela pandemia e a descoberta da homossexualidade do marido – determinou a saída de Dioneide e seus filhos da casa do pai. Ela sabia que os planos de sair de casa não agradariam o cônjuge, que praticava diversos tipos de violência doméstica contra ela. A partida foi semelhante a uma fuga de cativeiro.
Os 30 anos de frieza passados ao lado dele são expressos em palavras pela primeira vez pela mulher. Nascida em Santarém (PA), com outros nove irmãos – dois já falecidos –, saiu de casa com apenas 21 anos, após episódios de abusos e ameaças vindos do próprio cunhado. A família, com exceção da mãe, não a apoiou: “Meu pai me mandou ficar calada”.
Desde então, sua trajetória foi marcada por violências, traições e silenciamentos, assim como a de milhares de brasileiras. Segundo o Instituto Maria da Penha, em 2017, a cada dois segundos, uma mulher era vítima de violência doméstica, física ou verbal, no Brasil. Em 2020, no cenário de pandemia, foram 105 mil denúncias de violência contra mulher, segundo Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Violência doméstica: Patrimonial
Dioneide e o marido estavam juntos desde os 22 anos de idade. Segundo ela, o casamento aconteceu sem o seu completo consentimento. “Eu achei que ele tinha apenas montado uma procuração”, conta. “Quando ele voltou, um mês depois, veio com a certidão de casamento, no civil e no religioso”, lembra. “Foi assim que eu me casei, ele nem perguntou se eu queria. Ou como eu queria meu nome. Nada. Para ele foi um troféu; para mim, foi só mais um jeito de me controlar”.
O relacionamento avançou muito rápido e a mulher admite que nem sequer conhecia o marido realmente. A união, mesmo que ruim, era conveniente para ambas as partes: ela tentava escapar de seu passado em Santarém; ele finalmente colocaria um final na pressão por parte de seus pais para se casar.
Em três décadas de casamento, Dioneide mal teve acesso a seu próprio dinheiro. Apenas ele trabalhava, e não a ajudava. Não foi por falta de vontade que ela nunca conseguiu um emprego. “Ele sempre achava um jeito de boicotar todos os meus esforços”, diz. “Quantas vezes eu voltava para casa [de um emprego] e tinha comida jogada no chão, espalhada pela cama. Eu tinha que limpar tudo”, completa. Dar conta da casa, dos filhos e do marido – especialmente com sabotagens – impossibilitava que ela sustentasse um emprego.
Um estudo encomendado pelo C6 Bank ao Datafolha mostrou que as agressões verbais e restrições à participação no orçamento familiar são as formas de violência patrimonial mais frequentes no Brasil após a covid-19. Na Lei Maria da Penha, esse tipo de violência é “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”
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Psicológico das vítimas de violência doméstica
Antes da separação bem sucedida deste ano, não faltaram tentativas de romper com o marido. Mas foram todas frustradas, tanto pelo desamparo da lei quanto pelo empenho do homem para impedi-la. “Ele contratava dois ou três advogados particulares de uma vez; eu contava apenas com a ajuda do Estado”.
Sair de um relacionamento abusivo requer coragem. A psicóloga Thais Germano explica o cenário em que vivem as vítimas de violência doméstica: “O estado mental dentro de uma relação abusiva é deplorável. Pessoas que saem dessas relações enfrentam diversos problemas depois: medo, culpa, baixa autoestima, depressão. Algumas pessoas ainda se encontram em situações de perigo, quando o agressor pode querer se vingar”.
Da relação nasceram os filhos, mas o relacionamento do casal não contava com toques carinhosos ou momentos íntimos. Para Dioneide, o casamento e a família não passavam de uma máscara para o então marido. “Em 30 anos de casamento, nós só tivemos relações sexuais para conceber nossos filhos”, afirma.
“A liberdade é mágica”
Manu tem 22 anos e estudante na Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Ela relembra e narra como foi descobrir a homossexualidade do pai e como ajudou a mãe a sair de casa. “O wi-fi de casa tinha dado problema. Eu entrei no celular do meu pai para poder rotear a internet dele para os nossos celulares. Acabei dando uma olhada e encontrei conversas dele com outros homens. Conversas íntimas assim, não era coisa de amigo”, ela revela. “Foi um choque. Todos ficamos surpresos. Não que seja algo ruim, nós só não esperávamos encontrar isso”, completa.
Apesar de terem se surpreendido, algumas coisas começaram a fazer sentido. A relutância de ter relações sexuais com a esposa, como ela mesma declarou, e a sensação de que a família servia para esconder uma parte dele.
“A nossa saída foi cinematográfica”, lembra Dioneide sobre o dia em que fugiram de casa. “Eu estava na esquina de carro com um amigo, esperando minha mãe”, conta Manu. “Ela falou pro meu pai que ia sair para passear com os cachorros. Quando ela saiu, me encontrou na esquina, entrou no carro e fomos embora”.
Tudo foi planejado para que desse certo. Contaram com a ajuda de amigos que mandaram um carro de mudança para tirar os pertences pessoais de casa. Tudo ao mesmo tempo, para garantir que não houvesse erro, para que não houvesse represália. “Ele poderia me agredir, não deixar eu ir ou não deixar eu levar os cachorros, por isso eu saí escondida”, diz. “A liberdade é mágica”, desabafa Dioneide.