Fretes mais caros e menor alcance são possíveis efeitos apontados por eles se a proposta de venda dos Correios para a iniciativa privada for concluída
“Se não tiver os Correios e for tudo privatizado, como vai ser? Essas transportadoras fazem um frete absurdo para a minha cidade, que é muito pequena. Eu não conseguiria enviar se não tivesse Correios e eu também nem sei como receberia”, questiona Vitória Tesser, de 21 anos, estudante de Biologia e dona do brechó Estreula. Ela é uma das microempreendedoras que pode ser afetada pela medida em discussão no Congresso Nacional.
No dia 5 de agosto de 2021, foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto-base para a privatização dos Correios, que faz parte do Programa Nacional de Desestatização (PND), criado pelo ex-presidente Fernando Collor, na década de 90. O projeto consiste na venda de 100% da estatal para a iniciativa privada e, segundo especialistas, a previsão é de que essa venda seja feita até março de 2022, através de um leilão.
Criado há 358 anos, os Correios são uma das empresas mais antigas do País e, atualmente, atendem mais de 80% dos municípios brasileiros, um número alto, considerando sua dimensão quase continental. Em muitas dessas cidades, a empresa pública chega a ser a única representante da União.
Entre os serviços prestados pelos Correios, estão a regularização de CEPs, formalização de endereços, entrega de donativos (alimentos, roupas, medicamentos, etc) para áreas em situação de emergência, serviço bancário, logística das eleições com urnas eletrônicas, entrega de material escolar e da prova do Enem, distribuição de vacinas, além do envio nacional de encomendas. Frente a enorme lista de funções cobertas pela empresa, parte da população está apreensiva sobre a mudança de situação da estatal.
Durante a pandemia, o e-commerce brasileiro registrou um crescimento de 75%, de acordo com o levantamento da Mastercard. O aumento tem como um dos principais destaques o trabalho dos Correios na regulação da competitividade comercial entre os serviços postais. Assim, a manutenção de um preço justo pela estatal obriga as empresas privadas — como Jadlog, FedEx, UPS e DHL — a acompanharem o valor para continuarem sendo concorrentes dos Correios. Com a privatização, o risco dos preços dos fretes subirem é preocupante para os microempreendedores, que dependem do transporte barato oferecido pela estatal.
A visão das microempreendedoras sobre a privatização dos Correios
Para Elisa Brisighello, 30 anos, dona da Ara Saboaria, loja de cosméticos naturais, a privatização dos Correios pode significar uma completa mudança no futuro da empresa. Já que os preços podem subir e a qualidade do serviço diminuir, ela explica que seu empreendimento terá que mudar o foco cada vez mais para o comércio local.
A empreendedora da cidade de Mococa, no interior paulista, faz, atualmente, de dez a 15 entregas por mês para todo o Brasil. Ela conta seu maior receio quanto aos Correios: “Deixar de ser barato e acessível para todo país’’.
“Difícil pensar em um cenário em que a privatização seja vantajosa”, diz Elisa
A dona do brechó Estreula, Vitória Tesser, comenta que a concessão dos Correios para a iniciativa privada, além de encarecer o frete, pode inviabilizar a entrega em pequenos municípios, como o de Lucianópolis, cidade onde ela vive e tem seu próprio negócio.
Por semana, ela faz de dez a 15 envios para todas as partes do País. Questionada sobre a qualidade do serviço, Vitória lembra os acontecimentos na semana das discussões políticas sobre a privatização: “Quando estava tendo o debate da privatização, aconteceu aqui dos Correios fecharem vários dias, sem aviso”. Mas, ela afirma que foi a única experiência desagradável com a empresa: “Antes disso, sempre foi muito bom para mim ir aos Correios. Nunca aconteceu da encomenda desviar ou ter mal atendimento’’.
Talita Vieira, de 21 anos, dona da ECOLITA, também relata boas experiências com os Correios, e conta que já fez até amizade com os trabalhadores da agência: “Hoje em dia eles até buscam as encomendas na minha casa todos os dias’’.
Talita faz mais de mil envios por mês e reforça que, infelizmente, não vê essa qualidade de serviço em todas as cidades: “Tenho muitos problemas com os Correios de outras cidades. Eles só chamam uma vez e vão embora, fazendo a encomenda voltar para mim e eu perder venda’’. Apesar das falhas no serviço, a proprietária também acredita que a concessão da estatal pode não ser vantajosa para a sua loja, devido ao possível aumento nos fretes e a limitação do alcance dos serviços. “Meu único medo é o Correio se tornar inacessível a todos”, afirma Talita.
Veja mais em ESQUINAS
Com a maior alta das vendas online em 20 anos, e-commerce se tornou uma necessidade
Governo é “irresponsável” por apostar de novo em São Pedro, diz autor de tese sobre apagão de 2001
O que dizem os especialistas
Para o economista Sandro Prado, privatizar os Correios é emblemático, pois a empresa tricentenária tem grande importância para a população, principalmente no aspecto social. “Os Correios não existem para dar lucro, e sim para atender a população. Mesmo assim, foram poucos os anos em que os Correios trouxeram algum déficit para a União”. Entre 2001 e 2020, a estatal somou 16 anos de lucro e apenas quatro de prejuízo.
Outra questão apontada pelo economista é o futuro dos colaboradores da empresa após a concessão. No texto-base do projeto, o deputado Gil Cutrim (Republicanos-MA) incluiu um trecho que prevê a estabilidade dos colaboradores dos Correios por 18 meses. Porém, a medida não assegura que esses colaboradores não sejam desligados após esse período. “Isso abre espaço para as grandes empresas, chamadas de ‘category killers’”, afirma Sandro.
Devido a produção de serviços em massa, essas empresas conseguem manter uma forma de entrega própria, fornecendo fretes de baixo custo. É muito possível que isso acarrete em grandes empresas “engolindo” as pequenas, prejudicando expressivamente pequenos empreendedores brasileiros, que além de precisarem disputar com multinacionais também sofrerão com a provável alta dos fretes.
A cientista política Priscila Lapa critica a iniciativa de concessão e destaca que a real preocupação deveria ser com a taxa de desemprego que pode ser gerada com a privatização. “De um ponto de vista político e imediatista, esse aumento do desemprego cairá nas mãos do próximo governo, que terá que lidar com as inúmeras consequências do desmonte de uma das empresas mais importantes para o País”, afirma Priscila.
Segundo a especialista, os argumentos para a aprovação do projeto foram pautados em dois pilares: serviço ruim e déficit econômico. Porém, em 2020, foi apresentado pelo Conselho de Administração dos Correios um lucro líquido de R$ 1,53 bilhão, o maior dos últimos dez anos. Quanto ao serviço, a cientista política afirma: “Foi sendo precarizado até que as pessoas fossem convencidas que privatizar era a melhor opção”.