Com a chegada das aulas online nos cursinhos e escolas, alunos tiveram que adaptar suas rotinas de estudo para seguirem em busca da faculdade dos sonhos
Há mais de um ano, a vestibulanda de medicina Laura Halabi teve sua realidade abalada com a notícia do início da quarentena. Os jornais revelaram a chegada da pandemia no país para Rodrigo Pires, mas não foi uma grande surpresa para o estudante de cursinho: “Não foi do nada que anunciaram a quarentena, já estavam falando há algum tempo que isso poderia acontecer”. Quem contou sobre a situação do coronavírus para Yara Hernandez, outra concorrente a uma vaga de medicina, foi sua mãe: “Ela falou: ‘Nossa, tá tendo um vírus lá na China, umas pessoas estão caindo no chão, morrendo”’.
Assim como para muitos dos estudantes brasileiros, os próximos dias foram parecidos para os alunos, que estão em busca de uma vaga na faculdade de medicina. Em relação à sua escola, Laura diz: “Falaram que iam ser só 15 dias de suspensão e depois ia voltar tudo ao normal. Não voltou”.
A jornada até a medicina
Para Yara, o interesse pela área médica começou desde cedo, porém com algumas inseguranças. Inicialmente, o objetivo era seguir os passos da mãe: farmácia. Foi só no terceiro ano do ensino médio que a jovem admitiu para si mesma seu sonho: “Eu achava que medicina era impossível, que eu não era inteligente o suficiente para conseguir passar, mas aí eu decidi que ia tentar”.
Sendo um dos cursos mais concorridos do país, com cerca de 100 candidatos para cada vaga segundo dados divulgados pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), a medicina também provocou sentimentos de ansiedade em Rodrigo. “Eu acho que foi algo eu sempre quis fazer, mas eu não tinha coragem de aceitar que eu ia ter que sentar a bunda na cadeira e estudar muito”. Ele fez dois meses de administração antes de assumir que um futuro como médico era sua verdadeira ambição, mas a área já tinha despertado seu interesse desde cedo. O vestibulando começou a fazer musculação aos doze anos e passou estudar o corpo humano como hobby, para melhorar seu desempenho físico. “Eu me via a minha adolescência inteira estudando sobre o corpo humano como se fosse uma diversão”.
Desde os 13 anos, Laura já sabia que queria prestar medicina. A vestibulanda também sabe em qual área quer trabalhar: neurologia. De onde veio o interesse? “Grey’s Anatomy. Eu achei que seria bem hipócrita se eu quisesse ser médica e não ter assistido”, comenta a jovem sobre sua série preferida. O enredo da obra audiovisual conta com um neurocirurgião como um dos personagens que serviu de fonte de inspiração para Laura, mas ela não sabe se seguiria a parte cirúrgica. Em um raro momento de insegurança, ela confessa: “Minha mão não é muito boa, não sei se eu conseguiria”.
A chegada das aulas online
Laura nem sempre assistiu apenas ao seriado médico. Quando era menor, costumava assistir a filmes e programas da Disney e Nickelodeon. Foram nesses canais que ela teve a primeira visão sobre pessoas que estudavam integralmente em casa, com alguns dos personagens que passavam na TV: “Parecia tão legal pra eles, mas não é legal, não”.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 300 milhões de alunos tiveram as aulas suspensas no começo da pandemia. A chegada da covid-19 no Brasil fez com que as instituições de ensino aderissem ao regime remoto para continuar as aulas. Nessa situação, os vínculos e contatos dentro do ambiente de estudo mudaram radicalmente.
Laura foi uma das alunas que tiveram a rotina alterada por conta da quarentena. Indo estudar em período semi-integral, tinha nove aulas pela frente até a hora de voltar para casa, às 15h45. Isolada em casa, a estudante viu tudo mudar: começou a ter, em média, somente três aulas por dia. Com o calendário cheio de mudanças, a escola optou por não colocar nenhuma aula na segunda-feira. Aproveitando o dia livre, Laura usa seu tempo para adiantar as atividades: “Na segunda eu estudo um pouco, reviso matéria e faço as lições que eu preciso entregar durante a semana”.
Com a pandemia, Yara relata que começou a estudar muito mais do que antigamente. Por não ter tido uma boa base no ensino médio, ela diz que teve muita dificuldade ao chegar no cursinho: “Eu senti um baque com a diferença entre as coisas que eram cobradas no vestibular e as que eu tinha estudado no ensino médio”. Sentindo que não sabia absolutamente nada, Yara viu que era preciso correr atrás de toda a matéria que ela ainda não tinha aprendido. A estudante revela que estudou muito mais nos dois anos de pandemia do que no ano anterior. Apesar disso, ela não sabe se o aumento do nível dos estudos realmente ajudou: “Já teve dia que eu estudei 12h. Mas não quer dizer muita coisa, porque eu não consigo estudar tantas horas com qualidade”. Yara ainda acrescenta: “Eu sempre estou meio estressada e ansiosa”.
“A autocobrança leva à ansiedade e a ansiedade à procrastinação. Vira uma bola de neve”, alerta Thalita Lins, orientadora educacional formada em pedagogia, educação especial e psicopedagogia pela PUC-Campinas. Ela ajuda alunos a montar cronogramas de estudos, lidando com notas e faltas, além de realizar uma parte de acolhimento dos estudantes em relação à ansiedade.
“Para render mais o tempo de estudo, eu percebi que tem que ser mais espaçado. Como eles ficam seis horas direto na tela do computador no período da manhã, à eu comecei a espalhar um pouco mais o período de estudo”, explica a orientadora sobre a mudança da rotina de seus alunos desde o início da pandemia.
Quando se está trancado dentro de casa, é difícil ficar muito tempo no mesmo ambiente. Começa estudando em um quarto, então decide ir para outro. Quando vê, já mudou para o escritório. Essa foi a rotina de Rodrigo, que, durante sua fase de estudos longe do cursinho, mudou de cômodo para estudar mais de 3 vezes. A mudança não é só para melhorar o foco. Ao vagar por quartos familiares, à procura do lugar certo, Rodrigo reflete uma sensação compartilhada por muitos: estar perdido num mundo em que tudo rapidamente mudou.
Neste ano, decidiu trocar de cursinho, começando seus estudos no Poliedro: “Eu quero que seja meu último ano de cursinho, então fui para o melhor”. Ainda sim, o estudante relata sobre problemas no ensino remoto, principalmente nos primeiros meses: “No começo era bem difícil ficar em casa estudando. O EAD é o anti-foco”.
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A saúde mental dos futuros médicos
“Eu senti que eu estava meio que surtando e eu não conseguia dormir. E eu ficava um pouco com medo, do nada, dentro da minha própria casa”, comenta Yara. Um estudo realizado pela Fiocruz aponta que 40,4% dos brasileiros se sentem frequentemente tristes ou deprimidos na pandemia e 52,6% sofrem de ansiedade e nervosismo. Os mais afetados são jovens entre 19 e 29 anos. “Acho que isso foi em decorrência da pandemia, de tudo que tá acontecendo, de todas as notícias horríveis e de não poder ver mais as pessoas, amigos, de não poder sair”, completa Yara.
Essa consciência sobre seu próprio estado emocional não é algo muito comum entre os vestibulandos. “Raríssimas vezes o aluno fala que ele está ansioso, a não ser que ele já está há algum tempo fazendo terapia”, comenta a orientadora educacional. Ela também aconselha vestibulandos a realizarem atividades fora do âmbito acadêmico, como estratégia para combater a ansiedade: “Meditação, sempre ter um hobby que não seja em tela e praticar esportes, ter um tempo com os amigos online”.
Rodrigo leva esse conselho à risca. Acorda todos os dias às 4h da manhã antes das aulas do cursinho começarem às 7h. Esse tempo é reservado para fazer o que ele gosta, seja exercícios físicos, sua sessão de 20 minutos de meditação ou ler um livro. “Antes de entrar na porrada que é o cursinho, eu gosto de ter um tempo para mim mesmo”, ele explica.
Já Yara aproveita o período da noite para relaxar. Porém, ela demorou para perceber a importância desses momentos de lazer. Durante o ano de 2020, ela mal dedicava tempo para se cuidar. Em 2021, isso mudou. Agora, ela sempre para de estudar às 19h, mesmo que não tenha terminado todos os exercícios: “Eu sei que eu não vou conseguir render muito se eu continuar estudando cansada”. Assim como Rodrigo, ela usa seu tempo livre para realizar atividades que lhe dão prazer. Ela também pratica exercícios físicos, pois sente que sobra muita energia e acarreta em dificuldade para dormir. “Então, eu faço exercício, eu tento me alongar, eu vejo séries, filmes, coisas que eu sei que vão me fazer bem”.
O ritual de Laura é o passeio com seus cachorros: Bob, Rock e Nina. Todo dia ela leva o trio para dar uma volta na praça que fica na frente de sua casa. Se não está com seus pets, Laura se distrai vendo filmes com suas amigas virtualmente. A jovem prefere não se arriscar a se reunir presencialmente com as amigas por medo de se contaminar e transmitir o vírus: “Posso passar para a minha mãe, meu pai”. O resto do tempo livre é dedicado a sua série favorita. No começo da pandemia, Laura encontrou no programa não só um refúgio da realidade, mas a série também serviu como fonte de motivação. Quando ela assistia o programa, ele a fazia pensar: “Nossa, que legal! Eu quero ser isso!”.
O sonho abalado pela pandemia
Segundo a orientadora educacional, muitos de seus alunos desistiram dele no ano de 2020: “Eles foram para outras áreas: enfermagem, zootecnia… desistiram”. Mas, um ano depois do início da pandemia, os estudantes parecem ter reencontrado sua motivação. “Eu percebi que esse ano teve muito interesse em medicina”, completa.
A possibilidade de mudar de área nunca foi nem uma hipótese para Laura: “Eu acho que se você quer mesmo aquilo, não tem o que faça você mudar. Se eu quero mesmo isso, se eu gosto mesmo, eu fico nela”.
Yara passou a reconsiderar o quão importante é dedicar um tempo para si mesmo. Não apenas para o seu bem estar físico e emocional, mas até para os seus estudos. Depois de começar a descansar mais, ela revela que suas notas aumentaram, o que lhe trouxe mais esperança: “Antes eu não tinha nem chance de passar e agora eu estou chegando bem mais perto”.
A pandemia lançou uma sombra de incerteza sobre o mundo. Em uma realidade em que tudo pode mudar, o sonho em comum entre esses três jovens tornou-se uma fonte de segurança, algo sólido no meio da escuridão. Para Rodrigo, essa sombra não criou nenhuma dúvida: “A única coisa que eu me imagino fazendo e sendo feliz é medicina”.