A pandemia da covid-19 provocou uma mudança repentina do ensino presencial para as aulas online e gerou reflexos na alfabetização e socialização das crianças
“Ninguém estava preparado para o que viria a seguir. Meses de confinamento e professores se ‘virando nos 30’ para transformar aprendizados por vivências na escola em aprendizados online”, resume a jornalista Caroline Particelli Paviatto, mãe de Gabriela, de seis anos, e Pietro, de dez. Com a pandemia da covid-19, o distanciamento social e a mudança para aulas online, famílias como a de Caroline tiveram de fazer adaptações para dar conta da alfabetização dos pequenos. A transferência abrupta do modelo presencial para as aulas 100% remotas trouxe adaptações para os estudantes, professores e pais, sem exceção.
A alfabetização é uma etapa do processo educacional e social de importância vital na formação de cidadãos. Idealmente, ele ocorre por volta dos seis aos oito anos, e é ministrado por profissionais da educação. Com a pandemia, muitos pais tiveram de assumir parte dessa responsabilidade. “É de fato um processo lento, um processo que envolve a elaboração de hipóteses. E o professor também precisa de muito estudo para fazer com que essa criança avance”, afirma a professora e orientadora Deborah Vallilo.
Fora do contexto pandêmico, a alfabetização acontece de modo padronizado a partir da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) feita pelo MEC (Ministério da Educação). A partir de 2020, professores tiveram de realizar adaptações para o modelo online. O grande desafio foi se adaptar sem que o desenvolvimento de escrita e de leitura das crianças fosse comprometido.
Dentre as tantas dificuldades do aprendizado online, o tempo de tela que seria exigido dos alunos de primeiros e segundos anos do ensino fundamental foi uma das maiores preocupações entre pedagogos. Segundo Deborah Vallilo, “é impossível manter crianças de seis a sete anos prestando atenção em uma tela por quatro horas seguidas”. Na escola em que Deborah trabalha, a solução mais viável foi reduzir o tempo da aula pela metade, além de separar a sala em dois grupos, abrindo espaço para um atendimento individualizado para cada aluno.
Ainda para a professora Deborah, é possível alfabetizar crianças estando no ensino remoto. “Eu acho que no momento em que as aulas voltam presencialmente, realmente se vê avanços muito mais rápidos, tanto em relação ao desenvolvimento daquelas crianças quanto da própria escrita, leitura e todo o processo de entrada nesse aspecto da linguagem”, diz.
Além da forma “clássica” de ensino, mesmo que adaptado, colégios procuraram novas formas de sucesso no processo de alfabetização. Beatriz Dimenstein Appel, estudante de psicologia, auxilia nas salas de aula de uma escola particular na zona oeste da capital paulista. Na instituição, professores buscaram modos de ensino que estimulassem as crianças, para assim, mantê-las com a atenção voltada à aula. Um simples jogo de forca, por exemplo, poderia virar uma ferramenta auxiliar de ensino. “Eles gostavam bastante porque sempre era com o nome de alguns deles. Eles ficavam supondo, descobrem que alguns nomes são maiores e outros menores. E aí começam a pensar qual nome que eles conhecem que pode se encaixar. Começam a fazer hipótese de quantas letras tem cada nome.”
Por outro lado, sem o ensino presencial outras habilidades deixaram de ser trabalhadas. “O que eu acho que perdeu foi a letra cursiva mesmo. Porque não vejo como é possível aprender as posições das mãos sem o presencial”, afirma Carolina Paviatto.
Nesse período tão difícil, profissionais da educação precisaram agir e se organizar em alguns pontos. Primeiramente, a remanejar a própria relação professor e ensino, pois nunca haviam passado por um momento como esse. E, em segundo lugar, a relação de alunos para com as diversas frentes da formação: leitura, escrita e, principalmente, o convívio social.
Estes são aspectos fundamentais para a inserção no mundo letrado e formação de cidadãos participativos. Porém, não foram -e ainda são- todas as crianças que tiveram as mesmas oportunidades de ensino. As escolas privadas conseguiram se adaptar e mantiveram uma estrutura para o processo de alfabetização na pandemia, enquanto muitas escolas do setor público ficaram fechadas durante meses.
Nas escolas privadas, muitos profissionais entrevistados confirmaram que foi possível oferecer o letramento dessas crianças no online. Porém, com o retorno das aulas presenciais, foram observadas muitas alterações no comportamento. “Eu sinto que as crianças voltaram para a escola muito individualistas. A gente sabe que existe uma fase da vida mais egocêntrica, mas acho que isso se acentuou bastante com as crianças durante a pandemia; elas estão cada vez olhando mais apenas para elas, com muita dificuldade de dividir, com muita dificuldade de escuta e com muita dificuldade de seguir combinados e regras da escola, até porque uma vida na sociedade não existe sem combinados e regras”, compartilha Débora Valillo. “As crianças se adequaram a uma vida em casa com a família.”
Por conta do isolamento, a rotina acabou se alterando completamente nas casas dessas famílias. Os horários e os ambientes de estudo, sono, alimentação e entretenimento se confundiam, prejudicando a atenção e o aprendizado. E isso gerou mais ansiedade nas crianças. “Os maiores desafios para as crianças dessa idade, creio que é a organização e o interesse pela aula na tela. Elas sentem muita falta da interação pessoal tanto das professoras quanto dos alunos”, afirma Caroline Paviatto. “Para nós [pais] fica a angústia de não saber como ajudar nesse processo. Às vezes a gente interfere pela ansiedade e acaba atrapalhando o processo correto de aprendizagem.”
Mas a jornalista fez questão de frisar que esse período deixará marcas, porém “crianças com boas condições de tecnologia e bons professores terão menos do que outras, mas todas perderam alguma coisa”.
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Desigualdade escolar é agravada na pandemia
A pandemia foi e continua sendo um catalisador da desigualdade social no País. Com a pandemia, uma geração de brasileiros não obtiveram os meios para se adequar ao sistema de ensino online. A discrepância entre os setores público e privado não é novidade nenhuma dentro do Brasil, e com a alfabetização não foi diferente.
“Estou batendo muito na tecla dos diferentes contextos, mas é porque a gente não está falando de um processo de alfabetização em uma escola pública, por exemplo. Digo isso porque eu estagiei em uma escola pública na pandemia que desde o início não teve nenhum tipo de estrutura para dar aula, materiais e possibilidades”, relata Beatriz Dimenstein.
Segundo o estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um alerta sobre os impactos da pandemia da covid-19 na Educação”, realizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em parceria com o Cenpec Educação, mais de 5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação no ano de 2020, dos quais cerca de 40% encontram-se na faixa etária de seis a dez anos, chamada fase de alfabetização.
Elyvanda de Oliveira, idealizadora de um projeto social voltado à educação, afirmou: “Boa parte das crianças do bairro não consegue acompanhar, algumas por falta de interesse mesmo, outras porque não tem condições (internet, celular, computador, por exemplo). E quem tem internet, às vezes nem consegue assistir às aulas porque sempre acaba caindo a rede”. E, num Brasil desigual, esse número é mais que expressivo. Um estudo realizado pela TIC Domicílios indicou que cerca de 47 milhões de brasileiros não estavam conectados à internet e que 45 milhões se encontram nas classes sociais C, D e E.
Para entender mais sobre a alfabetização na pandemia, confira:
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