*Este filme foi visto no 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade 2018.
Depois de estar em pauta em 2017 como roteirista de dois filmes irregulares, Como Nossos Pais e Bingo – O Rei das Manhãs, Luiz Bolognesi continua aparecendo nas telonas, agora como diretor. No lugar dos roteiros mais quadrados, o cineasta aposta em uma marca diferente, na fronteira entre o documentário e a operação ficcional, na qual tenta esconder sua presença. No ambiente do real, no entanto, quanto mais tenta se esconder, mais Bolognesi aparece em Ex-pajé.
A história de Perpera, um pajé da tribo Pater Saruí que é forçado a se “converter” cristão, graças à entrada da cultura branca na sua tribo e como ela repercute entre os indígenas, é uma história de uma quebra da tradição. O que não necessariamente tira a obviedade e a falsa primeira impressão que pode suscitar a epígrafe de Pierre Clastres, leitura antropológica básica, diferenciando genocídio (a morte do corpo) e etnocídio (a morte da cultura).
Antes de travar contato com a personagem no tempo atual, vemos imagens de quase cinquenta anos atrás, quando o estilo de vida e o estranhamento com a cultura branca era mais radical. Não há muitas expressões reconhecíveis. Fica no ar uma percepção de susto, de aviso, e também de medo. Infelizmente, foi corrente no passado a ideia de superioridade cultural, como se o desenvolvimento das civilizações no mundo seguisse uma mesma linha do tempo evolutiva, cujo estado seria identificado por noções de organização social, linguagem e tecnologia. Naturalmente, os criadores desse pensamento colocaram-se no topo da pirâmide. As primeiras imagens de Ex-Pajé são sinais claros dessa penetração inevitável e de um primeiro gesto de resistência que será então trabalhado pela personagem-título.
Filmado por uma perspectiva extremamente observacional, sóbria, com posicionamentos de câmera calculados, Bolognesi cria uma espécie de conflito paradoxal claro e consciente. Logo no começo do filme, vemos uma cena em que o protagonista indígena recebe dois grossos volumes antropológicos em francês sobre os seus costumes. “Então é assim que os brancos fazem?”, ele pergunta. Ex-Pajé é o produto de alguém fora daquela realidade. Sobra, então, espaço para uma discussão sobre o posicionamento do diretor perante sua obra. Ao mesmo tempo, essa postura parece ser, no final das contas, uma das poucas possíveis.
Provavelmente, só assim conseguiria Bolognesi deixar clara a separação entre cultura e ética, e que sua crítica se direciona ao conflito entre corpos de espaços diferentes. Se a cena do pastor com forte sotaque estrangeiro explicando o porquê da necessidade do Espírito Santo no coração daquelas pessoas soa ridícula, é porque os próprios “atores”, os indígenas, mostram como ela é, de certa forma, incompatível com aquele ambiente e com as tradições que o (mesmo ex) pajé quer manter.
Na igreja, o chefe da aldeia é mero organizador e porteiro. Não abre a boca, senão no lugar que se sente confortável, isto é, longe dali. Ao mesmo tempo, algumas pessoas não veem problema em participar dos cultos. E tudo bem, a cultura pode ser orgânica, um esquema de trocas.
Afinal, não é só porque indígenas passam a usar a Internet, smartphones, roupas industrializadas, ter acesso a eletricidade, gás etc. que deixarão suas tradições. O fato é que nessa troca algo se esmaece e sob as pressões do mundo moderno, cada vez mais naturalizadas nas novas gerações, surgem resistências.
Bolognesi enxerga resistência em movimento rotineiros, tanto do próprio cotidiano do pajé – na tradição que ainda mantém em sua sabedoria (histórias, ritos, língua…) – ou no engajamento de outros indígenas mais novos, já intrincados com a cultura branca, e que usam desse conhecimento como arma contra a exploração madeireira na região.
Mesmo com uma narrativa de altos e baixos, visto que a encenação dos fatos pode incomodar, especialmente nos momentos finais, por uma certa “invasividade” que está na essência do projeto de Bolognesi, Ex-Pajé tem muito sucesso em retratar o dito etnocídio com o que “restou”: o corpo. E quando a ameaça da própria natureza (uma jararaca) vitima uma integrante da tribo, Perpera vê-se obrigado a retomar todos os seus ritos para salvar a mulher. Na tradição oral, em que a cultura está não no registro, mas na prática, se morre o corpo, ela vai junto. E apesar de estar inserido em uma situação inescapável, o pajé, na condição de ex faz lembrar a velha piada, de que quando torna-se ex, se é aquilo para sempre.
Ex-Pajé (idem – Brasil, 2018)
Direção: Luiz Bolognesi
Argumento: Luiz Bolognesi
Gênero: Documentário
Duração: 81 min.
* Esse texto foi publicado originalmente no site Bastidores.