Livraria Gato sem Rabo inova ao reunir apenas obras escritas por mulheres. Para fundadora, compromisso é com “a formação de leitores com senso crítico”
Nísia Floresta, Narcisa Amália, Gilka Machado, Patrícia Galvão, Hilda Hilst, Simone de Beauvoir… O que esses nomes têm em comum? Mais do que mulheres, todas elas se mobilizaram pela causa feminista por meio da escrita e do ativismo. Ainda hoje, é essencial relembrá-las. Para além das autoras já consagradas, mais importante ainda é ler e divulgar o trabalho de mulheres na literatura. É nesse contexto que uma livraria como a Gato sem Rabo, inaugurada em 2021 na Vila Buarque, apresenta sua proposta: reunir e vender apenas publicações femininas.
“Eu achei algo inovador e muito inspirador. Tem tanta obra de mulher e uma variedade tão grande de tantos tipos de mulher fazendo escritas diferentes… Eu vim muitas vezes desde que a livraria abriu, e toda vez que eu venho eu fico muito inspirada e emocionada, sempre descobrindo coisas novas”, afirma Mariana Marcondes, programadora, jornalista e editora. Para Marcondes e tantas outras mulheres, livrarias com essa abordagem têm apresentado novas dimensões da literatura e da causa feminista.
Johanna Stein, 31, fundadora do estabelecimento, agrega: “À medida que a gente consegue construir um espaço que possibilita visualizarmos o mundo através de outras perspectivas, temos a possibilidade de ajudar a formação de um público leitor com senso crítico e a possibilidade de mostrar outras formas de ver o mundo”.
Trajetória da livraria
Inaugurada em junho de 2021, a Gato sem Rabo localiza-se no centro de São Paulo, na avenida Amaral Gurgel, e está aberta ao público de terça a domingo, das 11h às 17h. A proposta estética exterior da livraria tende a conversar com a atmosfera do centro da cidade, visto que Stein optou por deixar as pichações e intervenções pré-existentes no lado de fora do estabelecimento. Por outro lado, com sofás, luzes amarelas e paredes cobertas de livros, a Gato Sem Rabo se destaca em meio ao fúnebre entorno do Minhocão.
Johanna encara o empreendimento “não como uma livraria no formato tradicional dos anos 2000, essas megas livrarias gigantes, mas sim uma livraria com uma pesquisa muito forte”. Ela alega ter tido o insight para fundar a loja ao enfrentar a dificuldade de encontrar bibliografia feminina: “Me frustrava muito o fato de não conseguir encontrar esses livros (de autoria feminina) nas livrarias com facilidade”. O problema destacado por Stein é, na verdade, muito comum àqueles que buscam diversificar a autoria de suas referências bibliográficas com identidades distintas.
Stein ouviu certos desaforos antes de inaugurar o empreendimento. Questionava-se a finalidade e escopo de atuação para a futura livraria. “Então, existia essa ideia de que as mulheres não escreviam. Antes de a gente abrir, muitas pessoas duvidavam: ‘Mas será que não é limitar demais uma livraria só com autoras? Será que você vai conseguir encher uma livraria?’. A questão é que as mulheres escreveram muito, só precisávamos abrir o olhar para essa produção textual”.
Expansão do repertório
A filósofa Eloisa Benvenutti, 39, reforça a ideia de ampliação de repertório e de formas de pensar com a existência da livraria. A pós-doutora em filosofia contemporânea, que pesquisa a ética e alteridade na perspectiva de Beauvoir, afirma: “ao longo da nossa educação, o acesso ao discurso sobre o mundo, o acesso ao discurso que nos formou é masculino. A gente aprende tudo pela voz dos homens, quase sempre os teóricos são homens”. Todo discurso que nos dão os critérios básicos para que a gente se reconheça no mundo e se forme e atue no mundo vem de uma voz masculina como se não tivesse ao longo da história uma ciência produzida por mulheres”.
Mariana Marcondes queixa-se de modo semelhante. Para a consumidora, “se formos ler somente o que nos foi recomendado, leremos só homens”. Malu Moura, 51, psicanalista e artista visual, declara que ao se deparar com as estantes exclusivamente femininas pela primeira vez, percebeu “nunca ter dado conta da quantidade de mulheres produzindo”. A artista ressalta, entretanto, que há mais identidades e mundos a serem incluídos nos catálogos de livrarias afora: “Mesmo assim, sei que tem um mundo, por exemplo, de Norte e Nordeste que ainda não é tão contemplado pelas editoras. Se aqui já tem um mundo, imagina quando for incluído mais coisas ainda, porque aqui é mais região Sul e Sudeste”.
A respeito do objetivo do estabelecimento, Johanna reforça que “a intenção é muito mais fortalecer aqui o que a gente já tem. Ajudar a formação de novos leitores é muito importante para o futuro de uma sociedade que lê”.
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Iniciativas independentes
Na livraria, também são realizadas reuniões literárias, nas quais trechos de obras são lidos e discutidos. “Os circuitos de leitura que a gente faz discutindo livros, trazemos pesquisadoras e tradutoras, para dividir com a gente as leituras que elas fazem dos títulos”, afirma Stein.
A escritora Adelaide Ivánova, que tem publicações na livraria, afirma que a Gato sem Rabo é “uma livraria independente e de rua, na qual as livreiras são leitoras cuidadosas e apaixonadas”.
Para Benvenutti, uma livraria feminina tem papel crucial na luta por mais direitos às mulheres. “O escamoteamento da mulher no ambiente literário é oriundo de décadas marcadas por trabalhos inferiorizados ou apropriados por presenças masculinas. A livraria tem a função de dar visibilidade à produção científica e de pensamento das mulheres num espaço só. Para você ter aquele primeiro impacto de ‘pô, tudo isso foi produzido por mulheres’”.
A Gato sem Rabo também implica neste movimento político por garantir lugar de destaque na fala para as referidas produtoras de informação. Para Ivánova, a disparidade de gênero foi sempre muito frequente na carreira como escritora: “Eu via o tempo todo, desde o portfólio das editoras, passando pelas seleções de festivais e prêmios, até os títulos que você encontra nas estantes. É sempre um misto de raiva e tédio que eu sinto quando vejo essas coisas se repetindo”
Adelaide constata que produzir conteúdo como mulher, ao invés de garantir enaltecimento, provoca frustração. A ideia de uma livraria feminista é a de “romper esse paradigma”, segundo a livreira Stein.
Impacto na causa feminista
Eloisa Benvenutti alega que “a ideia de que existe processo de humanização por meio do consumo não existe, a humanização é política pública (…) Enquanto não houver política pública que garanta a dignidade humana, a paisagem vai ser aquela (a achada pela iniciativa privada). Você só vai medir o real impacto da livraria ao longo do tempo, qual é o impacto real da livraria ao longo do tempo”.
Benvenutti acredita que a livraria é uma lembrança de todo o conhecimento produzido por mulheres e esquecido pela cultura patriarcal: “Por hora, a livraria Gato sem Rabo é simbólica, uma lembrança do escamoteamento da racionalidade feminista”. O impacto pragmático, porém, esbarra em problemas já existentes, como completa a filósofa. “Não há impacto real em termos de política pública ou ação para a comunidade por conta das desigualdades primeiras que já existem”.
A dona do estabelecimento defende o impacto positivo da livraria na luta política feminista. Segundo a livreira, a iniciativa “ajuda na formação de um público leitor com senso crítico e a possibilidade de mostrar outras formas de ver o mundo”. Stein afirma que a livraria “tenta acolher de alguma maneira a comunidade que está no entorno. Mesmo aos que não conseguem vir aqui e comprar um livro, essa comunidade consegue refletir, pensar e trocar conhecimento”.
Livrarias feministas, no brasil e no mundo
A ideia de concentrar publicações exclusivamente de autoras remonta a bem antes da fundação da Gato sem Rabo. Em setembro de 1991, a escritora Bebeti do Amaral Gurgel inaugurou um ponto de encontro para venda de livros, lançamentos e encontros. Fundada na capital paranaense, Lilith foi a primeira livraria feminista do Brasil. O acervo durou onze anos, sendo fechado em 2002.
A Livrarista seguiu a mesma tradição. Com uma curadoria de publicações também unicamente escritas por mulheres, a livraria online e particular oferece um conjunto de livros sobre o movimento feminista. O propósito é disseminar conteúdo de base em relação à luta política, fornecendo informações sobre as vertentes, metodologias e epistemologias do feminismo, visando o combate à desinformação.
Fora do Brasil, a abertura de livrarias com livros escritos apenas por mulheres vêm sendo consolidada. Nos Estados Unidos, 1977 Books, A Seat the Table Books, Womencrafts, Cafe Con Libros, Violet Valley Bookstore e People Called Women são alguns exemplos. O movimento é presente também no Reino Unido, com Black Feminist Store, Persephone Books e The Second Shelf.
Países como Áustria, Nova Zelândia, Finlândia, Portugal, França e Espanha, também ganharam suas locações, intituladas respectivamente de ChickList, The Women’s Bookshop, Femicomix Finland, Confraria Vermelha Livraria de Mulheres, Espace des Femmes e Mujeres & Compania.