Do desembarque na década de 1970 à consolidação no cenário musical, o funk brasileiro enfrentou muito preconceito. Confira um panorama histórico do gênero
O funk, a despeito de qualquer juízo de valor, está consolidado no repertório cultural e musical do Brasil. Quem vê hoje os batidões tomarem conta de shows país e mundo afora, entretanto, talvez não imagine tudo que o gênero precisou enfrentar até atingir este patamar.
Retomaremos o histórico do funk brasileiro a partir da perspectiva de sua ascensão a todos os setores da sociedade, perpassando a representatividade para as comunidades periféricas e vislumbrando o futuro do ritmo para os próximos anos.
O funk americano
Americano, o funk surgiu na transição dos anos 1950 para a década de 60. Inicialmente, tratava-se de uma derivação da soul music, popular estilo da comunidade afro-americana, e do gênero musical rhythm and blues. A cultura derivada deste gênero musical era periférica e principalmente oriunda do movimento negro.
Em 1950, os Estados Unidos viveram ‘’anos dourados’’. Foi uma década de várias revoluções, principalmente tecnológicas e de comunicação, como o surgimento das propagandas nos rádios e a invenção da televisão. Enquanto esta série de inovações acontecia, uma grande luta surgia por parte dos negros, mobilização que ganhou repercussão mundial.
A busca por direitos civis foi liderada por figuras como Martin Luther King e Malcolm X, cada qual ao seu modo de reformas sociais. A segregação racial fez com que grupos afro-americanos se isolassem em perfirerias como o bairro do Harlem, em Nova York, onde começaram a serem produzidas as primeiras músicas e composições do funk.
O som, com muito swing e groove, foi representado por grandes músicos como James Brown, considerado pai do funk americano, e Miles Davis, um dos maiores trompetistas da história da música, e inspirou diversos artistas em suas composições e formação de identidade. Jimi Hendrix, Talking Heads e os Red Hot Chili Peppers são alguns que beberam desta fonte.
Chegada ao brasil
O funk chegou em território nacional no final dos anos 70 e, logo de cara, ganhou os bailes da Zona Sul do Rio de Janeiro, área nobre do estado. Com batidas animadas e dançantes, sempre acompanhadas de grandes sucessos brasileiros ou reproduções americanas já consolidadas, era questão de tempo para que o gênero florescesse ainda mais em solo brasileiro. Logo após o crescimento da música popular brasileira (MPB) e do uso do local onde aconteciam os bailes, o funk à brasileira começou a adentrar os subúrbios cariocas com os Bailes da Pesada, que aconteciam de forma semanal.
Com a vinda dos anos 80, o funk praticado no Brasil ainda passava por muita influência dos americanos, embora já se apresentassem certas mudanças no gênero, como batidas que mais aceleradas e letras com tons acentuadamente eróticos. Até aqui, porém, todas as composições permaneciam em inglês. No final da década, porém, houve uma guinada: buscando atribuir batidas mais eletrônicas às melodias, Fernando Luís Mattos da Matta, o DJ Marlboro, lançou o seu primeiro disco, intitulado “funk Brasil”, que carregava consigo produções inteiramente nacionais, desde a batida até as letras.
Marlboro relata como foi o processo para a criação das primeiras músicas essencialmente “funk-brasileiras” e conta que, na verdade, a pioneira delas surgiu sem querer: “Eu fui testar a bateria e pensei, ‘vamos fazer uma versão do Melô da Mulher Feia’. Acabou que, quando eu terminei a música, adoraram. Eu fiquei até ansioso para tocar a música na rádio, porque eu não tinha tocado nada até então. Foi uma música feita de brincadeira e achei que ficou muito boa”
O artista também comenta que já pressentia o sucesso do funk no país: “Na contracapa do álbum, eu deixei uma mensagem como alusão ao futuro do funk, agradecendo ao Hermano Vianna [antropólogo e dedicado aos estudos sobre música]. Dizia o seguinte: ‘Agradecimentos ao Hermano Vianna, responsável por esse massacre’. Como era algo novo, não podia ser ainda considerado ‘massacre’, era uma alusão ao futuro”. O massacre a que Marlboro se referia seria o que o “novo estilo de música” faria com os outros em um futuro próximo.
Apesar da certeza da glória, o DJ não imaginava que isso pudesse acontecer tão rápido e atribui essa velocidade ao desenvolvimento da Internet: “A internet adiantou um processo que demoraria mais de 50 anos para menos de 20. No caso do samba, por exemplo, demorou todo esse tempo para fazer sucesso, e o funk, graças à internet, pôde estourar em menos tempo”, afirmou Marlboro.
O funk como movimento social
Com a virada do milênio, o funk deixou de ser um ritmo musical periférico, retratante do dia a dia das comunidades, e pôs-se a invadir as caixas de som de diversos espaços das classes média e alta do país. Casas noturnas, academias, rádios e telenovelas: o funk passava a incorporar a cultura popular brasileira.
Nesse mesmo período, a produtora Furacão 2000 atuou de forma crucial na popularização do gênero. Lançaram-se grandes nomes, que ao longo dos anos adquiriram status de referência no movimento. O Gaiola das Popozudas e Os Hawaianos, por exemplo, embalaram diversos hits. Em 2001, foi a vez do grupo Bonde do Tigrão, que conquistou o Brasil inteiro logo no primeiro álbum, vendendo mais de 250 mil cópias e faturando um disco de platina pela Pró-Música Brasil.
Posteriormente, as mulheres adentraram o ritmo que, apesar do teor machista em certas letras, forneceu também visibilidade para que estas pudessem falar de suas vidas, seus problemas e de suas sexualidades. É um dilema que pauta o debate sobre o funk até os presentes dias.
Tati Quebra-Barraco foi uma das principais difusoras do funk cantado por mulheres, embalando alguns hits na época como “Boladona” e “Sou feia, mas tô na moda”, músicas que serviram de inspiração para outras vozes femininas pudessem surgir no movimento e, portanto, com forte representação de empoderamento.
Orgulho e preconceito
Apesar de ainda passar por muito preconceito, o funk serve até os dias de hoje como uma das principais formas de distanciar o jovem periférico do crime. Para as comunidades, o funk é uma maneira de expor as vivências do cotidiano.
Ao mesmo tempo em que o funk é visto como uma forma de manifestação cultural, pode também ser responsável pela inserção dos jovens no meio artístico e no ativismo social. Foi assim que o estilo ascendeu ao nível internacional, uma vez que pessoas das mais diversas classes enxergam o funk como ferramenta de socialização e comunicação.
Diego Maia, artista de funk de 18 anos também conhecido como Demay, memora até hoje seu primeiro contato com o gênero: “quem tocava era o meu vizinho e eu achava sensacional (…) Foi há muito tempo, mais de 10 anos, coisa de quando eu era bem novo, por volta de 6 ou 5 anos”.
Funk, entre o crime e discriminação
Apesar de ser uma cultura que ganha cada vez mais o coração dos brasileiros, o funk ainda sofre discriminação por parte da população. A mídia, por relacionar o estilo musical com o crime organizado, retrata esse meio artístico, po vezes, de modo demasiado pejorativo. A suposta ligação do funk com o crime teve início em 1995, com o lançamento da música “Rap das Armas”
Danilo Cymrot, graduado em Direito pela Universidade de São Paulo em 2008 e atualmente Doutor e Mestre pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Universidade de São Paulo, defende em seu TCC que tanto frequentadores de baile funk quanto seus organizadores evidenciam uma associação entre a cor negra e o funk propriamente dito. O baile é um lugar em que o corpo negro pode se sentir à vontade, não sendo criminalizado, uma vez que são muitas vezes premiados.
Segundo o TCC de Danilo, em razão da falta de perspectiva de sucesso colocado à juventude negra das periferias, é previsto que alguns jovens “não resistam à tentação” do tráfico para alcançar uma qualidade de vida mais estável, visando ajudar a família e alcançar bens de status junto a mulheres. Entretanto, pelas vias do preconceito, é mais fácil colocar a culpa no funk, dizendo que este ”arregimenta mão de obra para o tráfico”, do que admitir que o modelo econômico não é o ideal, uma vez que há filas de jovens sem horizonte profissional.
DJ Marlboro atesta que viveu diversas experiências permeadas por preconceito: “eu fiquei indignado, porque tocava no subúrbio para 15 mil pessoas e não tinha um programa de televisão ou de rádio. Meu movimento era imenso, mas invisível. Já uma boate com 200 pessoas na Zona Sul… Aí tinha televisão, rádio, jornal, tudo. Era ingenuidade minha, eu não conseguia enxergar que a Zona Sul era uma vitrine de moda no Rio de Janeiro, enquanto o subúrbio era discriminado, e tudo o que era criado nele não era aceito”.
Demay, por sua vez, sente que estar na cena do funk ainda não é bem visto por certos setores. “Quando falo que canto funk, me perguntam o porquê de eu não fazer faculdade ou alguma outra coisa… Já precisei falar que queria fazer uma faculdade para não falar que eu canto funk”, conta o artista.
Das comunidades aos abonados
Desde os primeiros momentos do funk no Brasil, o gênero foi marcado pelo caráter periférico. Porém, com o surgimento de algumas subdivisões do estilo, foi possível identificar mudanças no público atingido pelas letras. Assim, deixou de ser algo escutado somente pelas classes socioeconomicamente baixas e alçou-se como alvo também das classes média e alta.
O primeiro subgênero a fazer isso foi o de ostentação. Para a adaptação, os MCs passaram a incluir em suas letras a vida luxuosa e a ostentação gerada pelos shows e músicas, com carros, marcas de luxo, bebidas e, transversal a todos esses elementos, objetificação das mulheres.
Após esse novo capítulo de popularidade, surge o funk consciente. O intuito é transmitir ao ouvinte a realidade em que o cantor, comunidade ou mesmo o país vivem. Um sucesso recente desse subgênero é o hit “Cracolândia”, que retrata a realidade do vício nas drogas.
O futuro do funk
O funk é uma grande fonte de inspiração para os jovens, principalmente para aqueles que vêm das comunidades. As letras e clipes das músicas representam uma ascensão social que, muitas vezes, parece inatingível.
Para os adeptos do gênero, além de forma de entretenimento – na figura das festas, bailes e pancadões -, o funk consciente desempenha um grande papel na formação do repertório sociopolítico do jovens. Propagam-se importantes mensagens que chegam ao público acompanhadas de uma linguagem de fácil entendimento.
Baile funk acontecendo em Paraisópolis (Foto: Fernando Cavalcanti/Reprodução: EL PAÍS)
Para quem canta, o futuro do funk no Brasil apresenta-se na forma de esperança em alcançar a glória. É o que conta Demay ao traçar o elusivo caminho de seu futuro: “Ter fama estadual, bater 100 mil em uma música, ter mais seguidores, fazer mais shows e, sobretudo, me firmar no mundo da música”.