Entre promessas, entraves e mentiras, jornada errática da Linha 18-Bronze revela desmonte dos tucanos; arquivamento da proposta ainda deixa dúvidas
João Doria, comerciante de carreira, nunca deixou de estar em evidência durante sua breve carreira política. Em 2016, levou a prefeitura de São Paulo já no primeiro turno; em 2018, traindo o compromisso de ficar à frente do Anhangabaú, lança-se ao governo do estado e vence mais uma vez. O desenvolvimento da primeira vacina a ser aplicada em território nacional, maior legado de sua gestão, talvez ofusque uma grande polêmica do mandato: o tucano foi o primeiro a cancelar uma linha de metropolitano com projeto básico e contrato assinado. A Linha 18-Bronze do Metrô, em modal de monotrilho, seria o primeiro ramal a sair dos limites da capital paulista.
São Bernardo do Campo é uma ilha tratando-se de transporte sobre trilhos. Aqueles que desejam usar o sistema metroferroviário possuem duas opções: o Corredor São Mateus-Jabaquara, que liga a cidade até as estações Jabaquara, Santo André e Berrini, ou utilizar linhas intermunicipais que vão até o terminal Sacomã, ao lado da estação da Linha 2-Verde, ou também até a estação Prefeito Celso Daniel-Santo André da CPTM. É peculiar que a terceira cidade mais populosa do estado – aproximadamente 849 mil habitantes em 2021 – seja a única do ABC paulista sem uma ligação com trilhos até agora.
Promessa antiga linha 18-bronze
O projeto de levar uma linha de metrô leve até a região do ABC existe pelo menos desde 2008. A Linha 18-Bronze teve seu edital lançado em 29 de janeiro de 2014 e seu contrato assinado em 22 de agosto do mesmo ano. A linha seria executada no formato de Parceria Público-Privada (PPP) com o consórcio vencedor VEMABC arcando com parte dos custos e sendo responsável pelas obras civis e operação em um período de 25 anos, modelo similar à Linha 6-Laranja. Todavia, os custos das desapropriações eram responsabilidade do estado de São Paulo. Esse dever acabou desencadeando os demais problemas na implantação do ramal.
Foi especulado que se trataria de um metrô pesado, mas o projeto logo deu espaço ao modal de monotrilho, assim como as linhas 17 e 15. Em sua primeira fase, ligaria a estação Tamanduateí até Djalma Dutra, em São Bernardo. Teria 13 estações, um pátio de manutenção, um estacionamento e demanda estimada de 314 mil passageiros por dia. Conectaria importantes polos educacionais e industriais até a capital paulista e faria o trajeto do centro de São Bernardo até a Linha 2-Verde em apenas 25 minutos.
Acordos e entraves linha 18-bronze
O monotrilho foi escolhido pela demanda média de passageiros e pelo seu menor custo e tempo de implantação. O custo total ficaria em torno de R$ 4,2 bilhões de reais (valores de 2014) considerando material rodante, sistemas, obras civis e serviços complementares. O poder público deveria arcar com R$ 1,9 bilhões desse valor, somado a R$ 406 milhões de reais para as desapropriações.
As concessões e as PPPs promovidas em São Paulo por governos de orientação neoliberal eram um sinal de que a economia do Brasil estava fragilizada com toda a comoção política que havia acontecendo desde 2013. Para conseguir arcar com os custos das desapropriações, o Estado de São Paulo tentou repetidas vezes financiamentos junto ao governo federal. O governo Alckmin teve dificuldades em conseguir acordos tanto na gestão de Dilma Rousseff quanto na do sucessor Michel Temer.
Inicialmente, a recusa tinha como base a incapacidade do governo Alckmin de gerar mais dívidas para garantir o financiamento internacional de US$ 182,7 milhões e, posteriormente, o governo federal alegou que a tramitação de um projeto de lei no Congresso Nacional estaria estagnando o empréstimo. O imbróglio acabou sendo postergado para 2017 e eventualmente 2018, onde o próximo governo eleito deveria arcar com a continuidade da linha.
“É compromisso”
Em campanha, o futuro governador João Doria afirmou em comício que “A Linha 18 do Metrô vem, sim, para o ABC, é compromisso”. Acabou sendo eleito e empossado e já em janeiro de 2019 passou a sugerir a possibilidade de um outro modal. Em fevereiro, o secretário dos Transportes Metropolitanos Alexandre Baldy admite que a linha pode ter seu modal trocado para um corredor de ônibus nos moldes do BRT (sigla para bus rapid transit).
Depois de quatro meses de indecisão, o governo anuncia o cancelamento formal do monotrilho e sua troca pelo BRT. As justificativas para a substituição foram a mudança da demanda diária de 314 mil passageiros em 2014 para apenas 150 mil em 2019, de acordo com estudos realizados pela própria Secretaria dos Transportes Metropolitanos, e a rapidez na implantação e custo menor.
O cancelamento formal deu-se em 5 de agosto de 2020. Atualmente, o consórcio vencedor busca uma indenização pela quebra do contrato. As obras do BRT tiveram seu início em fevereiro deste ano, com previsão de entrega em 2023.
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Modal inusitado
É interessante notar, contudo, a escolha do modal (o monotrilho) para uma região urbana densamente povoada como o ABC paulista. Thiago Guimarães, doutor em Mobilidade Urbana pela Universidade de Leeds, questiona as ambições dos governos Serra e Alckmin na adoção peculiar e repentina desse até então inédito meio de transporte.
A inserção do monotrilho no contexto do planejamento de transportes metropolitanos de São Paulo é um mistério. A gente não tem uma inserção formal nos instrumentos de planejamento que vinham sendo adotados no planejamento de transporte de alta capacidade do Estado de São Paulo. O monotrilho não aparece formalmente se você analisar. Existe uma certa quebra de lógica. Temos o PITU 2020 e depois o PITU 2025. Em algum momento o Estado de São Paulo lança a proposta de monotrilho de uma forma surpreendente no ponto de vista da continuidade dos planos urbanos de transporte de uma forma bem misteriosa
Há exemplos claros dessa inexperiência na própria Linha 15-Prata (Vila Prudente-Jardim Colonial): em 2016, uma composição deixou a estação Oratório com portas abertas e passageiros dentro; em 2019, dois trens colidiram na estação Jardim Planalto, mas o trecho ainda não estava aberto ao público; em 2020, enfim, um pneu do monotrilho caiu na avenida Sapopemba. Essas ocorrências também poderiam ocorrer no metrô convencional, mas é importante ressaltar a necessidade de testar rigorosamente os sistemas utilizados, especialmente quando eles se encontram a 20 metros do chão, suspensos apenas por vigas e pilares de concreto.
Continuando, Thiago reflete sobre a pertinência de utilizar o monotrilho no trecho da Linha 18-Bronze, ressaltando que a demanda estimada de 314 mil passageiros na região poderia ser melhor atendida por um ramal de metrô convencional ou trem, ambos de alta capacidade:
O particular da Linha 18-Bronze seria a chegada de um transporte sob trilhos conectando municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Você teria finalmente a Companhia do Metrô com um transporte sob trilhos de alta capacidade conectando municípios. Porém, feita uma mudança de plano de monotrilho para BRT. Na verdade, há uma demanda clara para transporte de alta capacidade.
O sistema de ônibus levará 40 minutos para realizar o trajeto, consideravelmente mais que os 25 previstos no monotrilho. Nem podemos considerá-lo um sistema de BRT autêntico, pois suas faixas não serão segregadas do resto do tráfego, sendo apenas faixas de ônibus comuns. Por fim, não haverá tarifa integrada ao resto do sistema metroviário, fazendo com que o usuário precise pagar o bilhete do ônibus e a integração com os trilhos.
Futuro da mobilidade urbana no ABC
Qual é, portanto, o futuro da mobilidade urbana no ABC, especialmente em São Bernardo do Campo? Ao anunciar o cancelamento do ramal, o governo Doria prometeu que o ABC teria “duas linhas de metrô”. Na verdade, uma dessas linhas seria a execução de reformas nas estações do ABC pertencentes à Linha 10-Turquesa junto com a aquisição de novos trens para o ramal.
A outra linha trata-se da 20-Rosa, com trajeto previsto da Lapa até Moema. O projeto estava “engavetado” pelo seu alto custo e foi resgatado com uma extensão perimetral até Santo André, passando por São Bernardo. Entretanto, o avanço está em fase embrionária: somente esse ano a Companhia do Metropolitano iniciou o estudo de impactos ambientais e, até agora, não há projeto básico de engenharia, aquele que determina o local exato das estações e é o último a ser realizado antes de dar início às desapropriações.
A Linha 20-Rosa possui um trajeto bem diferente da 18-Bronze. Ela corta São Bernardo de maneira apenas perimetral, passando pelos bairros Taboão, Paulicéia e Rudge Ramos. A Linha 18-Bronze faria uma conexão muito mais profunda. A boa notícia é que o ramal está sendo cogitado como um metrô convencional. Uma vez que observamos os impactos visuais gerados pelo caminho das linhas 15 e 17, trata-se de uma vantagem.
Projetos e prioridades
Hoje em dia, o governo prioriza a modernização dos sistemas de sinalização das linhas 1-Azul e 3-Vermelha e a instalação de portas de plataforma nas demais estações. Ocorrem obras de extensão da Linha 2-Verde até a Penha e da Linha 17-Ouro. Quanto a novos projetos, a Linha 20-Rosa aparenta estar em segundo plano. Movimentos recentes em relação à Linha 19-Celeste (Anhangabaú – Bosque Maia), com uma audiência pública realizada em julho deste ano, indicam que o ramal até Guarulhos provavelmente seja o próximo a ser construído pela companhia.
Procurado sobre o desenvolvimento de projetos da nova Linha 20-Rosa, a assessoria de imprensa do Metrô de São Paulo respondeu a reportagem da seguinte forma:
O Metrô trabalha na elaboração do Anteprojeto de Engenharia da Linha 20-Rosa, em todo o trecho de Santa Marina (região da Lapa) a Santo André. Esse projeto é fundamental para a definição de traçado e localização exata das estações, além de dar os subsídios para a contratação do Projeto Básico. A meta é concluir esse estudo até o fim do ano. Paralelamente, a Companhia elabora o EIA/RIMA, que é o estudo e relatório de impacto ambiental, atestando a viabilidade e fornecendo as informações para mitigar os impactos da obra. Também vem sendo feito o Financial Advisory que vai dar o molde financeiro de implantação da linha, apresentando soluções para atrair a participação de investidores.