Relação com a Seleção mudou muito desde a Copa de 2002 e, hoje, parece mais enfraquecida. Confira as causas para a mudança no perfil da torcida
A seleção brasileira levantou a tão cobiçada taça da Copa do Mundo pela última vez em 30 de junho de 2002, depois de vencer a Alemanha com dois gols do artilheiro da competição, Ronaldo Fenômeno. O grito de “campeão” saía com emoção da garganta dos torcedores. As ruas do país eram tomadas pelas cores verde e amarelo. O Brasil se consagrava com o pentacampeonato, o primeiro e único da história do torneio. 20 anos depois, porém, o interesse pelos brasileiros na Copa do Mundo não parece mais o mesmo.
Em meio às atuais polêmicas políticas e sociais que dominam o país, a seleção canarinho tem perdido torcedores. As conquistas em campo se apagaram. A discordância entre os brasileiros toma o lugar da harmonia cultivada no Japão, na última vez em que o Brasil foi campeão. E, por aqui, no país onde o futebol é reconhecido como “paixão nacional”, há torcedores brasileiros que estão declarando apoio a outras seleções na Copa. Por quê?
Polarização, mas não apenas
Para Celso Unzelte, professor universitário e comentarista esportivo da ESPN, o índice de rejeição e impopularidade pode se dar por causas que transcendem os gramados do jogo. Segundo ele, o Brasil enfrenta um momento tenso na política. A polarização, provocada pelas eleições deste ano, acaba refletindo na falta de identidade nacional no esporte.
“Como já havia acontecido no tempo da ditadura militar, um dos lados políticos tomou para si os símbolos nacionais como a bandeira, o hino e a camisa da seleção brasileira”, afirma o jornalista. “As pessoas estão evitando usar roupas verdes e amarelas porque estão muito relacionadas ao presidente Jair Bolsonaro.”
A opinião de Celso é compartilhada também por Marco Antonio Bettine de Almeida, professor associado da Universidade de São Paulo e pós-doutor em Sociologia do Esporte pela Universidade do Porto, em Portugal. De acordo com Bettine, torcer contra a seleção em um evento como a Copa do Mundo indica questões de fragmentação social. Além disso, a apropriação de elementos da tradição do esporte é um amálgama entre os cidadãos ao governo atual.
“Quando a campanha de Jair Bolsonaro se apropria desses valores, parte da população desenvolve uma aversão pela seleção, porque tem medo de ser identificada como apoiadora do governo”, explica Marco Antonio. “É uma fragmentação da identidade nacional, não por conta de um descontentamento exclusivo pelo futebol brasileiro, mas sim pela apropriação política dos símbolos”, completa o professor.
Desinteresse pela Copa
A queda do interesse do brasileiro pelo Mundial não pode ser considerada um fenômeno recente. Em 2010, quando o torneio foi sediado na África do Sul, cerca de 20% da população apresentava nenhum interesse pela Copa, apontou uma pesquisa do instituto Datafolha.
A meses da edição de 2014, realizado no Brasil, o número de “desentusiasmados” saltou para 36%. Neste ano, o desapego dos cidadãos quanto ao torneio atingiu a casa dos 50% da população. O número é semelhante ao registrado antes da competição na Rússia, em 2018, quando a indiferença chegou a 53%.
Um dos possíveis motivos para os números é um afastamento da seleção brasileira em relação ao torcedor. Neste ano, a equipe jogou no país apenas duas vezes. O problema foi reconhecido pelo atual presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ednaldo Rodrigues, em entrevista ao Globo Esporte.
“Existe realmente um afastamento muito grande da seleção brasileira para com seu torcedor. Isso em grande parte por conta dos jogos amistosos no exterior. Tem um contrato que vence agora em 2022. Queremos a seleção mais perto do torcedor, também dos patrocinadores e da imprensa”, disse o dirigente ao Globo Esporte.
Para Unzelte, a questão levantada pelo presidente da CBF faz sentido. “Enquanto os jogadores defendem seu país de origem na Copa, a identificação da torcida com o time é cada vez menor, inclusive pelo pouco contato que o público tem com a seleção”, afirma. “A seleção brasileira raramente joga aqui”, ressalta o professor.
Impacto da globalização
Na visão de comentaristas progressistas, como Casagrande e Tostão, o posicionamento político de alguns jogadores da Seleção acaba influenciando na percepção da torcida em relação ao time. Mas, para Celso Unzelte, o fenômeno da globalização também explica a baixa torcida.
A admiração e idolatria de jogadores em clubes estrangeiros, por exemplo, é algo recente. Celso diz que, algumas décadas atrás, as coisas não costumavam ser assim. “Na minha infância não lembro de ninguém que saísse na rua vestindo a camisa da Argentina, por exemplo, que é o principal rival do Brasil. Hoje em dia isso é comum”, comenta.
Segundo o jornalista, o acesso a campeonatos e clubes estrangeiros cria novas afinidades nas gerações mais novas. Além disso, a migração de craques brasileiros para times europeus também influencia a falta de identificação. “Nós temos mais acesso, inclusive ao futebol, a campeonatos estrangeiros, craques estrangeiros e clubes estrangeiros, o que já faz com que gerações de pessoas torçam para eles”, explica Unzelte.
O caso de Rafaela Gaspar, de 19 anos, ilustra o ponto trazido pelo professor. A estudante de jornalismo é torcedora da seleção de Portugal desde 2016, um pouco antes da Eurocopa. “A família do meu pai é portuguesa, meus avós são de lá e meu pai cresceu nesse meio. Então, eu fui muito influenciada por ele”, justifica a jovem.
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Identificação com os jogadores Copa
Gaspar concorda com as colocações de Unzelte. Para ela, o afastamento dos torcedores brasileiros se dá pela falta de identificação. “Acredito que por um tempo a seleção brasileira perdeu a identificação com o torcedor. O clube do coração sempre foi mais importante, e a seleção foi se distanciando do torcedor”, diz a estudante.
Celso concorda e acrescenta: “Outro aspecto [para a diminuição do interesse] é a falta de identificação cada vez maior da seleção brasileira com os brasileiros. Eu costumo dizer que o torcedor sofre pelo seu clube de uma maneira que não quer sofrer pela seleção”
O comentarista lembrou que nada é mais importante para o brasileiro do que seu time do coração. “A seleção tem que ter qualidade, tem que ter espetáculo, tem que ter resultado. Sempre foi assim. Com a seleção brasileira até faço uma brincadeira, que a relação com a seleção é só sexo, amor é com o clube”, diz o jornalista.
Além disso, Rafaela pontua: “essa relação de admiração entre torcedor e jogador ficou um pouco perdida”. Mas ela acredita que a torcida brasileira possa voltar a crescer no país. “A identificação com os jogadores está voltando, graças a Neymar, Vini Jr, Richarlison, Gabriel Jesus”, ressalta a estudante.
Já o estudante de jornalismo Ulisses Belluzzo, de 20 anos, largou a seleção por outros motivos. “Até tenho um carinho pela Seleção por conta de toda a representatividade que tem para o futebol, pelo bom trabalho feito atualmente e por alguns jogadores, mas a verdade é que a minha idolatria pelo Cristiano Ronaldo é maior do que tudo isso. Não acredito que ninguém trabalhe e mereça o título tanto quanto ele”.
Admiração e simpatia
Ainda segundo Ulisses, o fato de ser a última Copa de grandes craques provavelmente teve grande influência na torcida das pessoas. “Eu, por exemplo, vou torcer muito para o Cristiano Ronaldo conquistar por ser a última chance dele, não por causa da seleção portuguesa em si. Muitos vão fazer o mesmo com o Messi, ou até mesmo com o Neymar, que eu até acho que vai jogar outra Copa, mas talvez não”, afima Belluzzo.
Em uma pesquisa recente feita pela plataforma MindMiners, das mil pessoas entrevistadas no Brasil, 79% afirmaram gostar da Copa, em um espectro que vai desde os fanáticos até aqueles que são simples simpatizantes. Quando questionados sobre os jogadores de 2022, 31% disseram não conhecer a maior parte dos jogadores da seleção, e 40% responderam que todos os seus ídolos estão aposentados.
Nesse caso, a maior parte dos entrevistados se referia a nomes como Pelé e Ronaldo, ícones que conquistaram títulos para o Brasil. Hoje, no entanto, quando questionados sobre os atletas que mais farão falta em competições futuras, muitos torcedores do Brasil logo pensam em Messi e Cristiano Ronaldo, destaques de times rivais.
Mas a aposentadoria iminente de tantos jogadores consagrados é apenas uma das particularidades da Copa de 2022, que também é atípica por outro motivo: a mudança de data. Quando foi anunciada a transição de julho para dezembro, muitos se preocuparam com o impacto da nova data na torcida, que sempre esteve acostumada com o mesmo calendário. “Isso a gente só vai ver na hora, para ter uma comparação”, afirma Celso Unzelte.
É vez dos europeus? Copa
Se a empolgação da torcida ainda não pode ser medida, há um indicador de como os times podem ser afetados: a temporada europeia. Para os jogadores da Europa, a Copa em junho significa emendar uma maratona de jogos a outra, sem tempo para descanso ou recuperação. Em 2022, isso será diferente.
Os times brasileiros têm competições durante quase todo o ano, então para eles a diferença é mínima, mas é possível que esse intervalo entre a temporada de torneios europeus e a competição mundial favoreça os atletas do velho continente. “Acho que desse ponto de vista, do mundo, ajudou. No Brasil não faz muita diferença, né. Jogador se esborracha o ano inteiro, tem jogo todo dia”, comenta Celso.
No caso do Brasil, os atletas podem não prever as mudanças em seu desempenho ou no vínculo dos torcedores com a seleção nacional, mas um fator que pode influenciar o ânimo dos brasileiros são as eleições. O ano em que o povo brasileiro elege presidentes e governadores sempre coincide com a Copa do Mundo, mas em 2022, as eleições mais polarizadas da história terminaram antes do início dos jogos.
Em um cenário tão conturbado, no qual os símbolos da seleção brasileira foram apropriados por um dos lados da disputa, é positivo saber que a bandeira verde e amarela voltará a ser atribuída à torcida de um Brasil unido por aquilo que faz de melhor: o futebol.