Em 4 histórias, um retrato de algumas das milhares de tradições e culinárias que se perpetuam dentro da família, que mantém uma memória afetiva com o alimento
A relação com o alimento do dia a dia é construída de diferentes formas. Para aqueles que quando pequenos acompanhavam a produção dos alimentos consumidos, essa relação se torna muito mais forte e especial. No interior dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, distintas famílias cultivavam na roça os suprimentos que eram utilizados para preparar refeições bastante recorrentes no cenário rural do Brasil. Anos depois, essas pessoas ainda refletem essas memórias, seja sentindo o gosto e aroma dos pratos ao descrevê-los ou ainda preparando-os ritualmente, passando para os filhos os hábitos e culinárias vindos daquele tempo.
Realeza, Paraná culinárias
No sudoeste do Paraná, mais especificamente na Linha São Miguel em Realeza, Jovane Vendruscolo, 50 anos, cresceu na roça de seu pai, Ovídio. Diferentes atividades eram exercidas dentro daquele pedaço de terra, como alimentar os animais, colher a plantação e tirar leite das vacas.
Hoje, mais de 20 anos depois de ter vindo para São Paulo, a filha mais nova da família carrega na memória uma tradição daquele tempo.
Dentro da casa de madeira, após um dia de trabalho pesado, a família se reunia na cozinha. Sentados em cadeiras feitas de madeira e palha ao redor de uma mesa de fórmica eles se alimentavam. A polenta era o elemento indispensável e acompanhava frango, ovo frito, ou queijo, sem dispensar a salada de radite. A base do prato era feita com a farinha de milho, com o grão produzido pela família, assim como os demais acompanhamentos.
Em cima do fogão a lenha, a “polenteira” – panela de ferro usada especificamente para fazer o alimento – era guiada pela mãe Inês. Mas quando ela começava a engrossar, Ovídio assumia a pá de madeira (não era uma colher qualquer) e, por volta das 21 horas, jantavam juntos. “Vinha de família, tanto que me deram uma panela de ferro”, conta Jovane, que reside em Guarulhos, São Paulo.
Ao falar do prato, a caçula diz sentir o gostinho na boca. Hoje, Inês e Ovídio estão falecidos e a comida ganhou novos contornos. A memória guardada evoca uma afetividade de sua infância, com os pais e irmãos.
“Tenho muito gosto por isso. Família reunida, a gente conversando ao redor do fogão”, conclui.
Urânia, São Paulo
Benedita Cruz Mariano dos Santos e Walter Mariano dos Santos, de 75 e 79 anos, respectivamente, passaram a infância e adolescência na cidadezinha de Urânia, município do interior de São Paulo. A cidade pequena, de 8.836 habitantes, possuía uma economia baseada principalmente em atividades agrícolas.
Benedita e Walter, que futuramente se casariam, viveram os anos da infância dentro de atividades familiares que estavam relacionadas diretamente com o arar da terra, a plantação e a colheita. Com muitos irmãos, ambos trabalhavam na roça e cresceram em meio a relação afetiva de consumir o alimento que eles mesmos cultivavam.
“Lembro que minha mãe preparava um afogadinho de abóbora verde com carne de porco para a gente levar para a escola. Levávamos em uma marmitinha de alumínio. Era a melhor parte do almoço na escola, cada um levava sua marmita e comíamos juntos no pátio, com colher mesmo, a gente levava de casa. A carne do porco a gente deixava em uma lata de 20L, junto da gordura, para conservar por bastante tempo. E essa era a mistura.”, conta Walter sobre as memórias gastronômicas que possui daquela época.
“Até hoje eu gosto de comer maxixinho da roça, mandioca, carne de porco. Lembro com carinho e até hoje faço questão de manter esses alimentos em quase todas minhas refeições”, complementa ele, que arruma até briga quando fica sem o maxixe, a mandioca ou um rabanete para acompanhar o arroz e feijão.
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Já Benedita, doceira de mão cheia e que sempre foi conhecida pelo talento na cozinha, trabalhou a vida toda fazendo marmita, pães, bolos e doces. E é claro que sua história na roça influenciou essa prática. Ela conta que nem sempre era possível reunir a família para jantar e almoçar juntos; às vezes, era preciso levar um “caldeirãozinho” com a comida para os pais e irmãos que estavam trabalhando na terra.
“A gente plantava de tudo: arroz, feijão, café. Lembro de comer muito frango com quiabo, eu e meus irmãos gostávamos muito. Eu trabalhava na roça e aprendi a cozinhar com minha mãe, mas o que eu sempre gostei mais de fazer eram os doces. Eu gostava muito de fazer doce de leite, eu mesma fazia. Ficava esperando dar o ponto ansiosa, tinha o de colher e o em pedaços. Sempre fui doceira.”, conta ela.
Além do doce de leite, também tinha o doce de mamão verde, que Benedita fazia para os irmãos e família. Anos depois, o doce de leite e de mamão também virou um pedido recorrente de seus netos.
Lutécia, São Paulo culinárias
Rita de Azevedo Casiraghi, filha de Maria de Azevedo Torres, nasceu na pequena cidade de Lutécia, no interior do estado de São Paulo. A relação com a comida vem com a memória afetiva de um dos pratos mais típicos do brasileiro sudestino: arroz, feijão, um “bife molhadinho” e “batata frita bem crocante”, ela descreve. culinárias
O carinho vem, especialmente, pela imagem de sua mãe cozinhando. “Ela era uma excelente cozinheira, tudo que ela fazia ficava gostoso”, conta. A imagem da sua mãe, agora já falecida, a acompanha e se faz presente em vários momentos e em histórias de família, mas Rita diz que “sempre que faço bife aqui em casa, sinto o cheiro do que ela fazia para nós”. culinárias
Maria viveu com Rita a vida inteira. De Lutécia, mudaram-se para a capital e, nos anos 70, acompanhou a mudança da filha para o Rio de Janeiro. Na nova terra, manteve algumas tradições antigas.
Ela tinha o hábito de sempre ter uma horta no quintal, para poder cultivar e consumir o próprio alimento.
“Quanto mudamos para essa casa [em Barra Mansa, Rio de Janeiro], ela construiu várias hortas e cuidava das plantas. Só parou quando estava perto dos 90 anos, e tínhamos medo dela cair e se machucar”, relembra Rita.
Ao final da nossa conversa, que se deu por meio do whatsapp devido à distância, ela pediu para me contar uma “estória”. A lembrança se passa quando Rita tinha apenas 10 anos e sua irmã, que ainda morava no interior do estado, ficou doente, precisando dos cuidados da mãe. A caçula acompanhou dona Maria na viagem, e conta que “lá sim nós tínhamos que fazer de tudo”. culinárias
Criar galinhas, cuidar dos porcos, fazer farinha de mandioca, abate de animais, fazer sabão, retirar água do poço. Esses são apenas alguns dos exemplos dados de atividades que ela fazia diariamente na casa da irmã mais velha.
“Lá, nada se comprava pronto, tudo nós que fazíamos, e eu com 10 anos precisava ajudar. Naquele tempo, criança era mão de obra e eu ainda precisava estudar”, finaliza.
Caratinga, Minas Gerais
Não muito longe dali, no córrego de São Pedro, localizado na pequena cidade de Caratinga, em Minas Gerais, Wagner Gomes relembra como era sua relação com o famoso frango caipira.
“Minha mãe que fazia a comida, sentávamos no chão gelado da cozinha com os pratos nas mãos, e jantávamos depois de um dia cheio de trabalho na roça”, conta ele.
Nascido e criado no interior, o falou sobre a relação direta do trabalho com a sua alimentação na infância. “A comida era ligada com o que plantávamos, criávamos e colhíamos. Tudo que existia ali no nosso quintal, virava alimento no final do dia. Então, podíamos acompanhar o processo de tudo que ia para nossa mesa”.
Hoje, ele vive em São Paulo, mas mesmo assim, não deixou que a mudança de região afetasse seus hábitos alimentares e borrasse a memória afetiva daquela comida.
“Sempre quando posso como frango caipira, gosto de fazer em casa e a memória da comida mexe muito comigo, tem gosto de infância e sabor de me imaginar criança”.