A tese do Marco Temporal está à espera de aprovação no Senado e discussão no Supremo Tribunal Federal, em Brasília
Uma decisão que pode definir o rumo de mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas em aberto no Brasil – o Marco Temporal. Essa tese jurídica prevê que os povos indígenas só têm direito à demarcação de suas terras tradicionais se as estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição Federal.
Tal prerrogativa está associada ao chamado “direito originário” dos indígenas às suas terras ancestrais. Ela é considerada por muitos uma forma de violência e apagamento da história desses povos no país. Como uma das maneiras de protesto contra a tese, um acampamento foi montado em Brasília, perto da Esplanada dos Ministérios, com representantes de comunidades indígenas de vários estados. O ato aconteceu no início deste mês, quando a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto Lei 490/07, que pode manter o Marco Temporal. Agora, o texto será analisado pelo Senado.
Caroline Rocha, gerente de clima no World Resources Institute (WRI), explica, “na prática, a adoção do Marco Temporal interrompe grande parte de procedimentos administrativos de reconhecimento de direitos territoriais, o que consolida a propriedade de pessoas que adquiriram a terra posteriormente e elimina a chance de retificação de esbulhos que ocorreram no passado, ameaçando a própria existência de alguns povos”.
Enquanto defensores dos direitos indígenas e do meio-ambiente são contrários à tese, parte do setor ruralista defende que há necessidade de garantir segurança jurídica e destaca o risco de desapropriações com a não-aprovação da tese. O Marco Temporal facilitará que áreas, antes pertencentes a populações indígenas, possam ser privatizadas, atendendo interesses comerciais de proprietários rurais.
Rocha alerta que também não é apenas o setor ruralista que defende essa tese. “A aprovação do Marco Temporal é uma reivindicação dos setores ligados à produção rural, mas não só a eles. Haviam cidades inteiras dentro da Reserva Raposa Serra do Sol, de forma que por vezes esses interesses são também urbanos”, explica.
Caso a tese passe pelo Senado e não haja nenhuma reprimenda pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os processos de demarcação de terras indígenas poderão ser suspensos. Dessa forma, caso povos indígenas não comprovem a presença em suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988, eles poderão ser expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem.
Cartilha da Apib
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou, em resposta à tramitação do Marco Temporal, uma cartilha analisando as consequências do Projeto de Lei do Marco Temporal e destacando os aspectos históricos da contribuição dos povos indígenas na constituição da sociedade brasileira.
De acordo com a própria articulação, “para ele (o Marco Temporal), de 5 de outubro de 88 para trás não há mais história, e sim a partir daquele dia. Ele inverte a lógica também: quem não estava passa a estar, e quem estava passa a ser invasor”.
As informações divulgadas pela Apib demonstram uma ideia de que a demarcação das terras indígenas seria considerada um atraso econômico àqueles que defendem o Marco Temporal – como se a preservação da cultura e dessa população fosse algo atrasado em vista do capital.
A tese tem sido amplamente defendida pelos setores ruralistas e políticos contrários aos direitos dos povos indígenas e do meio ambiente. Segundo esses grupos, a falta de clareza sobre a data da demarcação das terras indígenas geraria insegurança jurídica e conflitos fundiários.
A exposição da Apib ainda destaca que a parcela ruralista e fundiária apoiadora do Marco Temporal considera que o plano nacional de desenvolvimento e progresso consiste na exploração máxima das terras, e que essas zonas deveriam ser modernizadas.
A divergência na concepção do uso da terra decorre, em linhas gerais, da discordância entre os grupos indígenas e a sociedade moderna sobre o que significa a produtividade. Os povos indígenas, por sua vez, não acreditam que seja necessário explorar todos os recursos naturais do território para a obtenção de capital para uma terra ser considerada produtiva.
A Apib também inclui que, caso o texto normativo seja posto em prática, a segurança e sobrevivência dos povos indígenas estaria em xeque.
Inconstitucionalidade do Marco Temporal
O documento também traz a base da inconstitucionalidade do Marco Temporal, tendo em vista que a Constituição Federal adotou a Teoria do Indigenato, que consiste em um direito originário, anterior ao próprio Estado e a qualquer outro direito.
A Constituição Federal também prevê, no artigo 231, o direito dos povos indígenas originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. As terras indígenas, segundo o texto, são aquelas habitadas em caráter permanente, utilizadas para atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar de seus ocupantes e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Caso o Marco Temporal entre em vigor, o Brasil estará rompendo com a Convenção n. 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Brasil, e que, portanto, tem força normativa dentro do país.
O texto garante que povos indígenas devem ser consultados em iniciativas e projetos que dizem respeito a suas terras.
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Impactos do Marco Temporal
A Apib ainda afirma que, caso o Marco Temporal seja aprovado, todas as Terras Indígenas serão avaliadas de acordo com a tese, colocando os 1393 territórios sob ameaça direta. De acordo com eles, situações como dos Yanomamis serão mais recorrentes.
Na prática, a tese reforça ainda mais a perpetuação de práticas racistas contra indígenas, povo já fragilizado perante os ruralistas que a defendem. Desse modo, a instituição do Marco Temporal acaba abrindo ainda mais precedentes para que as demarcações indígenas sejam questionadas, colocando em risco a segurança tanto dos que vivem em terras com demarcações já homologadas quanto daqueles que ainda vivem em locais que estão sob disputa territorial.
Além do perigo de destruição dos povos indígenas, há a perspectiva de aumento do desmatamento e destruição do meio ambiente. De acordo com um estudo da Apib em conjunto com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), 29% do território ao redor das Terras Indígenas está desmatado, enquanto dentro das mesmas só há 2% de desmatamento.
“Do ponto de vista ambiental, comprovadamente as terras indígenas e as unidades de conservação são melhores sumidouros de carbono do que áreas não destinadas, pela sua probabilidade diminuída de desmatamento. O Brasil deveria adotar como política pública converter as suas florestas à criação de Áreas de Proteção”, explica Rocha.
Nesse cenário, pesquisadores do Ipam prevêem duas possíveis situações caso o Marco Temporal seja aprovado. Na primeira, se considera o desmate legal, permitido pelo Código Florestal, no qual 20% do bioma amazônico poderá ser desmatado, além de 50% do cerrado e do Pantanal. No segundo cenário se soma, também, a exploração e desmate ilegal das terras por grileiros. Neste, 50% das terras indígenas e 70% do cerrado e do Pantanal estariam sofrendo de desmatamento, ou seja, mais de 55 milhões de hectares.
Portanto, a soma da ameaça social aos sinais de um futuro ainda mais grave para o meio ambiente mostra a posição de fragilidade que a aprovação do Marco Temporal deixa em povos originários e terras ricas em fauna e flora naturais.