Curtas de Elisa Aleva evidenciam olhar endógeno sobre dores e traumas que se perpetuam
Grades, uma xícara de café, um vinil vermelho, taças, uma lâmpada. As primeiras imagens de “Agora se vira, meu bem”, primeiro curta de Elisa Aleva como diretora, definem bem o ambiente de um íntimo aconchegante que, no entanto, corre o risco de tornar-se solidão. O roteiro, baseado em fragmentos escritos por Lígia Gomes, mãe da cineasta que cursa Rádio, TV e Internet na Faculdade Cásper Líbero, é justamente um monólogo sobre aflições e términos sem perspectivas de recomeços. Mas, antes de adentrarmos o sofrimento e as dúvidas da personagem interpretada por Marina Azze, surge a imagem de uma estrada noturna, do ponto de vista do motorista de um veículo.
Essa imagem, tão cara ao cineasta David Lynch, parece retomar o símbolo de um caminho (uma razão) a ser percorrido a partir de algumas referências (os faróis do carro, as sinalizações, a luz e a câmera de cinema), mas que nunca consegue ser completamente apreendido. O filme parece começar afirmando a natural incompletude da sua ambição, sempre maior.
“Agora se vira, meu bem”, premiado nos festivais de Suzano (SP) e TPCine (Três Pontas, em Minas Gerais), seria uma sequência de clichês sobre o sofrimento – aliás, valeria uma atuação mais contida de Azze –, não fossem as tentativas de buscar, por meio do texto e da encenação, um ato de confissão e uma experiência sensorial que abracem esse movimento interior.
Com apuro técnico, a câmera na mão busca registrar o estado de espírito da protagonista, seja na instabilidade da imagem, seja na aproximação excessiva da atriz, em planos claustrofóbicos. Em uma sequência de imagens e fragmentos que não tenta fechar uma análise psicológica particular, apostando em uma empatia um pouco vaga, Aleva acompanha o descarrilamento da razão da personagem que criou. “Essa dor”, as primeiras palavras do monólogo, parecem reafirmar esse contato direto com o público.
Para fingir a dor que a “palavra” sente, a câmera, mais do que uma simples cúmplice do discurso, se torna aos poucos uma espécie de voyeur, cuja presença a personagem parece notar ao olhar diretamente para a lente. Esse voyeurismo, por sua vez, se transforma ao longo do filme em uma pressão, um julgamento, resultado da confissão, a qual a personagem tenta combater, mas não consegue.
Nos últimos minutos do curta, duas cenas espelhadas são exemplo perfeito dessa condição. Primeiro, a câmera recua enquanto a personagem corre, tentando perseguir a perspectiva que a oprime. Tenta, mas desiste, e a visão parece abandoná-la. Em seguida, enquanto a mulher interpretada por Azze caminha pela rua, a câmera agora a segue. Esse ser onipresente (talvez a culpa, a memória, um trauma…) mostra-se, pois, uma busca constante e, como diz a personagem, uma “dor que vem de dentro, que nenhum plano de saúde cobre de tão difícil que é encontrar a cura”. Com essa conclusão fatídica, o filme mostra a personagem cumprindo sua penitência fatal, chamando uma ambulância e desaparecendo sobre a maca.
O (re)canto
Em continuidade à temática de “Agora se vira, meu bem”, Elisa Aleva fez “O Canto”, seu segundo curta-metragem, também premiado no festival TPCine. Se no primeiro a análise era direcionada aos espaços internos e inatingíveis, agora o caso é de enfrentar o passado e sua relação com um ambiente muito específico.
“O Canto” conta uma passagem na vida de Lia, uma professora de 36 anos que começa a ficar obcecada por uma casa. O roteiro foi escrito por Roberta Bernardo, também estudante de Rádio, TV e Internet da Cásper, baseado em um sonho de Aleva.
Os planos iniciais mostram o interior vazio dessa morada e parecem indicar naquele lugar uma presença maligna, que está sempre à espreita pelos seus olhos, as janelas. Aos poucos, descobrimos que a obsessão tem muito mais a ver com um diálogo que a protagonista consegue estabelecer com seu passado.
Tal como “Agora se vira, meu bem”, o curta trata de um íntimo pulsante, muito ligado ao feminino. Marina Azze, parceira constante que a diretora conheceu em Varginha, sua cidade natal em Minas Gerais, retorna como uma personagem presa em um dilema, ou de continuar vivendo, atormentada por um trauma que não consegue decifrar, senão por flashes desse passado, ou retornar para o “seu canto” e enfrentar os fatos.
Com uma narrativa mais clássica, menos fluente que a do seu primeiro curta, Aleva vai traçando a transformação do caráter da personagem e refletindo isso nos ambientes que ela ocupa, até culminar em uma regressão à infância. As ações são pontuadas e dissonantes: o tempo passa na vida da protagonista e não é possível acompanhar cronologicamente esses saltos.
Com 21 anos, a cineasta, que começou sua carreira como atriz, hoje não consegue se ver longe do cinema e está preparando o próximo curta, que será seu trabalho de conclusão de curso. “Ela acorda cedo” contará a história de uma mulher que tenta se recuperar de uma recente tentativa de suicídio. Isto é, a narrativa de um recomeço, possibilidade privada da personagem de “Agora se vira, meu bem” e que começa a ser tateada em “O Canto”. Por ora, a cineasta já adiantou que um dos cenários do curta será uma loja de cristais (locação que ainda está procurando, a propósito) – provavelmente, pensado como um ambiente externo que traduza a situação frágil pela qual passa a protagonista.
As obras de Elisa Aleva foram selecionadas para integrar uma programação de curtas que será exibida no CineSesc entre 19 a 25 de julho.