Como literatura negra infantojuvenil pode valorizar a ancestralidade - Revista Esquinas

Como literatura negra infantojuvenil pode valorizar a ancestralidade

Por Davi Alves, Julia Tortoriello e Maria Cecília Dallal : março 13, 2024

A lógica da afrocentricidade se destaca por meio do pertencimento e ligação do povo negro com suas origens. Foto: Reprodução/Pexels

A sociedade se molda em torno de gerações: como a educação racial pode auxiliar no autoconhecimento de crianças negras

A pluralidade de ideias a respeito de questões raciais levanta o debate sobre uma reprodução da história afro-brasileira a partir da autonomia e liberdade, e o fazer literário para criação de narrativas essencialmente negras. A literatura negra para o público infantojuvenil pode desempenhar um papel importante na educação dessas crianças.

A educação racial na infância negra

“Eu trabalhei três anos com educação infantil, mas a literatura de apoio que me era oferecida, não trazia diversidade e não viabilizava a presença do negro na sociedade. E quando tinha, era de forma pejorativa, estereotipada, em situações de subalternidade e submissão”, relata a pedagoga e escritora Niní Kemba Náyò.

Incomodada pela reação das crianças, que chegavam a chorar quando ouviam histórias sobre racismo e escravidão, a pedagoga juntou dois assuntos: literatura e questões raciais. Náyò passou a procurar, em sebos de Salvador, por histórias que trouxessem a imagem do negro de forma positiva.

“Eu entendi que precisava de narrativas que potencializassem essas crianças, que fizessem elas erguerem a cabeça e ir à luta, mas, sobretudo, entendessem as suas origens. Fui em busca de literaturas que não falassem de racismo e escravidão, mas da história do povo negro”, completa.

A educação racial serve para as crianças conseguirem entender como suas emoções surgem e controlá-las conforme o racismo sistêmico ocorre durante a infância, adolescência, idade adulta e velhice.

“As crianças são formadas pela educação que a disponibilizamos. Se a formação não tiver esse olhar, fica muito difícil. É necessário ter professores capacitados e com escolas que compreendam o papel da representatividade nas salas de aula”, diz a bibliotecária, mestra e doutora em Ciência da Informação, Léia Santos.

No setor educacional, a falta de preparação das escolas e professores gera insatabilidade no debate. A bibliotecária relembra experiências em colégios que se recusavam a falar sobre assuntos considerados “negativos” para as crianças, deslocando, em sua maioria, as crianças negras da realidade.

Afrocentricidade negra

Segundo IBGE, apenas 7,4% dos professores brasileiros são negros e indígenas, portanto, a importância dessa temática muitas vezes é deixada à margem das escolas, pela falta de experiência e conhecimento de professores brancos. A escolaridade brasileira é formada majoritariamente por pessoas brancas. Desde os professores às pessoas com cargos mais altos, a branquitude ocupa maior espaço.

A pedagoga Náyò orienta a sua vida a partir da afrocentricidade, abordagem que incentiva o povo negro a construir os seus próprios dispostivos de vivência. Na literatura negra, o sujeito africano precisa estar no centro da história para que ela seja verdadeira, e não vítima de estereotipização. “As crianças negras não sabem porque sofrem racismo. É difícil explicar que o seu valor é desprezado na sociedade por conta da sua raça”, lamenta.

A escritora prioriza a educação africana na infância, com foco em professores e pesquisadores da área. Para que ocorram adaptações na literatura, evitando que o racismo seja tratado de maneira equivocada. “Espero que a educação afrocentrada faça parte do processo educacional dessas crianças. Compreender a si ajuda na luta diária”, afirma.

A inserção da literatura negra no processo de desenvolvimento das crianças é fundamental para o autoconhecimento, entretanto, não existe apenas essa maneira. História, Português, Inglês, entre outras matérias da grade curricular, também podem desempenhar papel educacional, construindo repertório aos pequenos. Náyò, durante as aulas de Matemática e Português, prioriza, no começo de todas as aulas, explicar a origem das matérias.

Além de utilizar a literatura como meio educacional, a educadora, hoje, lida com as crianças a partir de músicas, danças e brincadeiras de matriz africana.

“Ao se reconhecer, a criança aprende a lidar com o racismo de forma menos dolorosa, com mais maturidade para entender o processo de desvalorização da sua história. Essas crianças precisam estar preparadas para se defender”, explica.

A pedagoga compreende que a sociedade está ligada de forma inseparável ao poder da branquitude, e visualiza não ser possível existir pessoas afrocentradas no mundo. Entretanto, a criança tem a posibilidade de sair do caráter meramente leitor, para o leitor-pesquisador. “Não é fácil, mas é possível.” Com a criação de mecanismos de liberadade do povo negro a partir de uma educação de reconhecimento, no caso, o acesso à materiais e conteúdos em que o sujeito africano está no centro da história, entre outros que priorizam a valorização do ser.

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Autoconhecimento é prioridade

A sociedade procura avançar dia após dia, criando conceitos a partir de vivências de cada ser ou de uma parcela privilegiada. Ao longo dos anos, crianças e adolescentes negros, são deslocados dessa realidade, e ficam perdidos com suas emoções e como controlá-las. “Quando a criança não conhece a construção literária de seu povo, termina por conhecer outras. E isso pode criar uma defasagem em relação ao que ela é. Uma espécie de autonegação”, argumenta o professor e escritor Jocevaldo Santiago.

A bibliotecária Santos exemplifica: “Você vai querer ser a sua amiga branca. Vai querer o mesmo tratamento que é oferecido a sua amiga”. A falta de representatividade caracteriza a sensação de deslocamento, onde as crianças começam a se questionar: “Por que estou em um lugar onde não têm pessoas negras?”. Neste cenário, a criança cresce em um ambiente escolar sem semelhantes, com o sentimento de rejeição perante a sociedade que a circunda.

No entanto, existem contextos diferentes, onde o auxílio familiar muda o cenário.

“Os meus pais ouviam reggae, samba-reggae e olodum. Eu ia todo ano no bloco Olodum Mirim. Isso tudo com 5 anos. As músicas do Olodum são a história da África. Tudo isso foi me trazendo naturalidade em ser negra”, relembra a escritora Náyò.

Representatividade negra

A representatividade é feita por meio de diferentes formatos, mas seu princípio é fazer com que haja amplitude nos processos de escuta das minorias, que são constantemente ignoradas pela sociedade e pelo Estado, para que suas demandas sejam atendidas e registradas.

Porém, o reconhecimento fornecido à esses grupos, sendo nas grandes telas ou nos meios literários, pode não coexistir de maneira realista com a sociedade em que vivem. Atualmente, há literatura negra escrita para o público infantil e adulto, filmes e séries também são produzidos, mas até onde isso condiz com a realidade da comunidade?

Para Santiago, a construção da narrativa é o que importa na representação de um povo. “Produzir um filme com a Ariel negra não faz dela uma representação significativa. Na sua construção, a personagem, independente da raça, é construída de uma narrativa branca. Agora, pegamos de exemplo a Quianda, de Iemanjá. Essa é uma verdadeira perspectiva negra para as crianças.”

Se a literatura não for negra, o contato não será o ideal, além de correr o risco de popularizar um material ignorante, como o livro “Menina Bonita do Laço de Fita”, da autora Ana Maria Machado.

“Achar esse livro bom é ignorar que a palavra ‘mulata’ é utilizada na sociedade de forma pejorativa. Se pegarmos as crianças e ensinarmos que somos negros e africanos, e que a palavra ‘mulato’ surge de ‘mula’, é natural que associem o livro a algo imprestável”, explica Náyò.

Na história contada por Maria Machado, além de haver um coelho mais inteligente do que a personagem principal, ela faz suposições para entender o porquê dela ser negra, não fornecendo o reconhecimento, mas sim a diferenciação de maneira errônea. “São questionamentos esdrúxulos e desconfortáveis, principalmente para uma pessoa negra”, afirma a pedagoga.

Pegue de exemplo o Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. O sabugo de milho, que não é um ser vivo, é mais inteligente do que os personagens negros da história. Os livros, no contexto da época, foram positivos, segundo Náyò, apesar da falta de conhecimento sobre afrocentricidade na litratura.

O que se escuta: “Isso é racista?”

A ignorância da branquitude é cômoda para aqueles que a possuem, portanto, ao sair da sua bolha, a população branca alega que seria um dever da comunidade negra os ensinarem o que seria ou não racismo. Entretanto, a literatura negra não é um serviço de cessar a ignorância branca. “Eu não posso fazer isso com a literatura negra, colocá-la ao serviço de brancos, ela está sendo produzida como forma de reconhecimento próprio”, explica o professor Santiago.

A falta de informação já não é mais um problema como na época do Sítio do Pica-Pau Amarelo, entretanto, os brancos, em falsa aparência social, forçam uma suposta escuta antirracista. “Por ser a única negra do grupo, virei a referência no assunto. E sinceramente, eu não tenho essa obrigação. Afinal, eu não sou a única pessoa que pensa”, relembra Léia Santos sobre uma situação desconfortável que passou.

Problemática do “antirracismo”

Niní Kemba Náyò e Jocevaldo Santiago desacreditam de uma luta antirracista, termo popular reproduzido em debates. O “antirracismo” pode se tornar um problema para a população negra no momento em que a branquitude se apropria do significado e ocupa o lugar de emancipação do negro.

Segundo Santiago, quando abrimos espaços para as perspectivas literárias antirracistas, diminuímos o sentido vital da pessoa negra a sua condição racial. “O racismo não é um problema meu. O racismo é um problema dos brancos, construído e mantido por eles para a manutenção dos privilégios. O ser negro não se inicia a partir da tragédia da escravização. É muito antes.” O “antirracismo” na literatura se sustenta a partir do poder branco dentro das editoras, que se utilizam de personagens negros, mas não abrem espaço para uma mudança estrutural.

“Isso está tirando a oportunidade de autores negros e autoras negras de publicarem os seus livros. Termina com um branco ocupando esse lugar. Assim, o ‘antirracismo’ também produz mecanismos de manutenção de privilégios”, conclui o professor.

Em uma sociedade de caráter mercantil, essa falsa representatividade não afeta apenas o setor literário, mas o cinema, a música, a dança, entre outros. Dentro desse contexto, para Náyò, a lógica da afrocentricidade se destaca por meio do pertencimento e ligação do povo negro com suas origens.

Editado por Ronaldo Saez

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