Mais do que apenas livros: entenda a importância da representatividade dentro do mercado editorial - Revista Esquinas

Mais do que apenas livros: entenda a importância da representatividade dentro do mercado editorial

Por Ana Luiza Lamarão, Camila Iannicelli, Juliana Sanches, Letícia Baggio e Sophia Molinari : janeiro 26, 2023

Foto: Nick Fewings via Unsplash

Autores, editores e criadores de conteúdo comentam sobre a representação de grupos minotirários no campo da literatura e do mercado editorial

Os livros são uma porta de entrada para o autoconhecimento e para a construção da identidade de milhares de pessoas. Dentro desse universo, a apresentação de diversos perfis sociais na literatura é fundamental para que haja a criação de uma sociedade mais justa e inclusiva. Embora nela existam personagens que representam minorias, geralmente sua caracterização é estereotipada e retratada de forma rasa, ou então estão presentes apenas para criar uma falsa imagem de que o autor se importa com certas pautas sociais. Essa necessidade de representatividade na literatura ganhou ainda mais enfoque com a crise sanitária da covid-19.

As pessoas estavam restritas quanto à circulação e isoladas em suas casas, buscando uma forma de fugir da tensa realidade que o mundo vivia. Um auxílio para isso foi a busca de seu universo criativo pessoal, principalmente por meio da leitura. De acordo com o Painel do Varejo de Livros no Brasil, em um levantamento feito com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e Nielsen BookScan, no primeiro semestre de 2021, 28 milhões de livros foram vendidos.

Um aumento de 47,5% em comparação com 2020. Para diversificar as publicações da editora frente a esse cenário, a Companhia das Letras, em 2020, contratou um diretor de diversidade: Fernando Baldraia.

“Havia uma movimentação tímida de pessoas negras dentro da editora; eram poucas que trabalhavam em uma companhia que tem muita gente. Eu entrei em julho de 2020, ou seja, já entrei depois do caso do George Floyd, que teve uma comoção mundial, uma onda que levou várias empresas a se moverem nesse sentido”, conta Baldraia.

“Mas, esse movimento dentro da editora já é fruto de um debate dos movimentos sociais no Brasil que já existe há pelo menos uns vinte anos, que começou a esquentar, principalmente com o debate de cotas nas universidades nos anos 2000, e que nunca mais saiu de pauta”, completa.

Representatividade em pauta

Depois de George Floyd ter sido mais uma vítima da extrema violência policial contra a população negra, a necessidade de inserir as populações oprimidas de forma mais igualitária nos espaços sociais e garantir suas presenças em todos os ambientes aumentou, e não foi diferente na área da literatura.

A procura por obras com representatividade começou a crescer. Esse meio ganhou ainda mais destaque pela sua popularização em redes sociais, como o TikTok e o Instagram.

Além da Companhia das Letras, outras editoras também estão comprometidas com essas causas. Um exemplo é a Panda Books. Fundada em 1999, pelo jornalista Marcelo Duarte, a Panda já em 2006 causou alarde com a publicação de Amor entre Meninas, em uma época em que o tabu da homossexualidade era maior ainda.

“A gente sempre teve uma preocupação com a representatividade de diferentes etnias nas ilustrações dos nossos livros — personagens negros, indígenas, com deficiências. Como trabalhamos muito com escolas, escolas públicas, essa preocupação sempre esteve intrínseca para as crianças se verem representadas nas obras”, comenta Tatiana Fulas, uma das sócias da editora.

Desde 2008, com a Lei 11645/2008, passou a ser obrigatória a inserção do ensino sobre história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em todo o currículo escolar. Essa lei intensificou o debate sobre o tratamento dessas temáticas no meio sócio-educacional, e os livros são uma das maneiras mais importantes de levar o conhecimento e a representatividade para as crianças.

Representatividade Indígena

Daniel Munduruku é ativista e escritor vencedor de prêmios como o Jabuti, o Érico Vanucci Mendes e o Tolerância (Unesco), além de possuir vários de seus livros com o selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Sobre a conquistas dessas honrarias, ele comenta: “Isso acaba reverberando, acaba alcançando as altas esferas da sociedade brasileira. As pessoas começam a olhar para nós não mais como um coitado, mas como uma pessoa qualificada”.

Para ele, a visibilidade que os indígenas conquistam por meio da literatura é essencial para mudar o estereótipo atrasado que é associado a eles, como a necessidade constante de justificar o porquê de viver na cidade e ter um celular ou um automóvel.

Daniel conta que sua cultura não acredita no futuro; sua tradição venera o presente, o agora, pois é o único tempo que confirmadamente temos. Ele se diz muito feliz por ver a mudança que suas obras influenciam atualmente, a forma como constroem uma importância para as pessoas.

Mesmo assim, partindo da nossa perspectiva de futuro, Daniel comenta:

“A literatura vem ajudando a mudar mentalidades. Se der tudo certo, daqui a cinco, dez anos, numa próxima geração, portanto, já vão estar com uma cabeça bem mais formada, bem mais preparada, para poder enfrentar os desafios do mundo e olhar as populações indígenas com mais respeito, mais parcimônia, mais tolerância, e certamente vão ter melhores condições de oferecer para os povos indígenas um lugar mais adequado para a sua sobrevivência”.

Representatividade LGBTQIA+

Outra causa que vem ganhando cada vez mais destaque nos últimos anos é a LGBTQIA+. Como expoente desse ativismo literário, pode-se citar Clara Alves.

A autora teve seu primeiro romance jovem adulto LGBTQIA+, Conectadas (2019), na lista dos mais vendidos da revista Veja, recebendo o selo Cátedra Unesco de Literatura da PUC-Rio. Seu livro mais recente, Romance Real, foi publicado em 2022 e já ocupa espaço na Lista Nielsen da PublishNews, ranking que apura as obras mais vendidas em livrarias no Brasil .

“Eu fico muito feliz de ver que livros de romance LGBT estão chegando em listas como essa, e é uma honra poder ser uma dessas pessoas que abrem esses caminhos”, relata a escritora. Em entrevista, Clara comenta sobre a importância da representatividade na literatura nacional e sobre a maneira como personagens LGBTs são retratados em obras, sempre relacionados a cenários caóticos, de preconceitos e infelicidade:

“É uma coisa que eu sempre trabalho nas minhas histórias; a grande questão é mostrar para as minorias sociais que elas também podem ser protagonistas, que a história delas não é só drama, tragédia e coisas ruins. A literatura consegue dar esse conforto para aqueles que ainda não se entenderam direito”, afirma.

A autora também comenta sobre como a representatividade de personagens LGBTQIA+ é importante para quebrar o padrão da comunidade sempre ser retratada nas obras relacionada a cenários caóticos, de preconceitos e infelicidades.

“Mas, por mais que você fale sobre saída do armário, a nossa vida não é só sair do armário. Não acho que a gente esteja ‘cansado’ de histórias sobre sair do armário porque sempre vão ter gerações novas que precisam ler sobre isso, mas eu acho que a gente está caminhando para uma luta de trazer o protagonismo LGBT para todo tipo de história e gêneros literários; nem sempre vai ter um romance, às vezes vai ser um super-herói, às vezes os personagens só vão existir”.

Além de falar sobre sua visão a partir da comunidade LGBT, a autora também fala sobre a necessidade e importância desses livros para todas as pessoas, sendo assim possível lidar com esse preconceito enraizado na sociedade:

“Histórias com o protagonismo de minorias não são só para essas pessoas, são para todo mundo. Elas têm a grande importância de fazer com que ajude a criar pessoas mais tolerantes e respeitosas, que consigam enxergar diferentes vivências e realidades como normais. É muito importante que pessoas que não fazem parte desses grupos sociais leiam e entendam essas histórias”.

Ao ser questionada sobre o futuro da literatura brasileira, Clara comenta sobre suas expectativas e a influência das redes sociais nesse caminho, principalmente em relação ao TikTok. Na rede social de vídeo, o BookTok é formado por usuários que produzem conteúdos onde são compartilhadas resenhas, críticas e trends literárias, estimulando a leitura.

Criadores desse tipo de conteúdo ganharam rapidamente uma grande marca de seguidores durante a pandemia e influenciaram a compra de muitas obras, como Mentirosos (2014), de E. Lockhart, e Um de Nós Está Mentindo (2017), de Karen McManus, que chegaram às listas de mais vendidas do Brasil graças aos usuários do aplicativo.

“A literatura nacional foi alavancada pelo BookTok. A grande mídia foca muito nos gringos, o que dificulta a expansão nacional”, diz Alves. Ainda segundo a escritora, uma das maiores dificuldades dos escritores nacionais é alcançarem as grandes editoras, e ocuparem com mais protagonismo esses espaços.

“Acho que o mercado não ajuda muito. Em listas de mais vendidos, a gente ainda vê muito mais livro gringo do que livro nacional. Alguns sucessos de livros, como foi com Conectadas, acho que estão ajudando a fazer as editoras enxergarem que existe um potencial muito grande nesse mercado, e até fazer os leitores deixarem o preconceito contra livros nacionais de lado”, conclui.

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Representatividade negra

Fernando Baldraia, diretor de diversidade da Companhia das Letras, comenta sobre a questão dos preconceitos dentro do mercado editorial. Para ele, o preconceito presente dentro de editoras não é algo direto, visto que as pessoas que convivem nesse mundo estão antenadas com a realidade.

Entretanto, de acordo com o diretor, é possível ver algumas formas de preconceito velado, por exemplo, em relação àquilo que é chamado de racismo estrutural, na escolha ou na divulgação de certos projetos e na falta de divulgação de alguns outros. “Em número absolutos, se antes não tinha nenhum desses produtos, e agora vendemos dez unidades, de zero para dez, temos um aumento gigantesco. Agora, dez é muito? Não, dez é pouco, mas quando parávamos para ver, não tinha nada”, explica.

Ao ser questionado sobre sua visão em relação à venda de obras relacionadas a minorias sociais, Fernando disserta sobre o número inferior de vendas e também sobre a repressão de certos tipos de histórias que merecem lugar nas prateleiras de livrarias:

“Não tenho nem dúvidas, a gente tem uma demanda reprimida de obras com representatividade. Foram quase quatrocentos anos de escravidão, aonde foi parar essa história? Se eu te perguntar agora, se você conhece um personagem da literatura brasileira que era um escravo e possui grande influência, muitas pessoas não vão conseguir me dar um nome. Aonde foi parar a imaginação, aonde foi parar a vida de todas essas pessoas? É como se tivéssemos várias histórias que estão presas na mente de pessoas que estão fazendo outras coisas”.

Pelos olhos do consumidor

Não só protagonista dentro da mudança de hábitos na leitura dos jovens brasileiros, as redes sociais estão atuando para a ampliação da divulgação de obras que abordam as temáticas sociais já mencionadas.

“Eu ainda não faço um trabalho muito exemplar. Vivo em uma bolha e na minha escolha de coisas pra ler eu estou refletindo os meus preconceitos. Por exemplo, por ser hétero, demorei para perceber que não trazia com muita frequência livros LGBT. Demorei para enxergar que estava pecando na representatividade; me dei conta tarde, mas antes tarde do que nunca”, afirma Isabella Lubrano, leitora ativa, dona do canal “Ler Antes de Morrer”, com mais de 600 mil inscritos no youtube, e grande influenciadora do BookTube – parte da comunidade do Youtube focada em livros.

“Infelizmente preciso misturar a necessidade de trazer livros bons junto com a diversidade temática e também pensar nos números, afinal, esse é o meu trabalho. Mas o importante é eu não estar satisfeita e saber que meu trabalho não está concluído, eu sei que tenho essa responsabilidade”.

Por ter maior enfoque na literatura clássica, Isabella comenta sobre a falta de representatividade nos livros que lê com mais frequência, mas também revela como faz para trazer pautas sociais à tona devido à importância de fazer com que seus seguidores tenham acesso a tais temáticas:

“Os autores refletem aquilo que vivem no seu tempo, cada um com as barreiras e preconceitos do seu tempo. A Agatha Christie, por exemplo, era extremamente racista. A representatividade é muito pequena. Há um tempo atrás percebi que nos clássicos que eu lia só tinha autor homem e pensei que precisava melhorar isso; fui me obrigando a trazer mais mulheres, mas confesso que trago muito poucos livros clássicos escritos por autores negros, indígenas e LGBTs. A temática LGBT é mais ofuscada nos clássicos, então tenho buscado autores contemporâneos e venho tentando inserir essas pautas”.

Mercado editorial

Independentemente do entrevistado ser autor, editor ou leitor, todos comentam sobre o mercado editorial nacional e a dificuldade de conseguir espaço falando sobre minorias sociais. A sócia da editora Panda, Tatiana Fulas, comenta sobre a elitização do mercado editorial, mas também sobre as pequenas mudanças que já são capazes de serem notadas:

“O mercado editorial sempre foi muito elitista, as pessoas que trabalham com livros já vêm de uma formação acadêmica ou de famílias que prezam pelo livro. Eu lembro que quando eu entrei no mercado editorial, em 2002, você não via editores negros. O que eu percebo é que de alguns anos para cá aconteceu uma abertura em relação a isso. Realmente existe um movimento de fora para dentro. Eu tenho percebido uma preocupação grande na busca de autores: negros, mais mulheres, ilustradores negros, e o mesmo com autores e ilustradores indígenas. É uma questão tanto de dentro da equipe das editoras quanto de convidar autores de diferentes frentes”.

A autora do sucesso LGBT Conectadas, Clara Alves, também contou seu ponto de vista em relação a essa pauta. Para ela, o mercado editorial do qual seu livro faz parte, relacionado à literatura jovem, é mais aberto, porém tal avanço não pode ser garantido para outros gêneros e públicos alvos.

Por fim, Isabella Lubrano fala sobre o preconceito presente entre os próprios consumidores da literatura. Para ela, a questão de gênero é o principal motivo de preconceito. A youtuber, inclusive, comenta sobre o caso da escritora da saga de Harry Potter, J. K. Rowling, que foi aconselhada a não usar seu primeiro nome (Joanne) na assinatura de seus livros, visto que, segundo a visão do mercado, “é difícil um homem sentir vontade de ler ou consumir conteúdos feitos por mulheres”.

Editado por Anna Casiraghi

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