Novo filme de Marco Dutra e Juliana Rojas é um ótimo respiro de gênero no cinema nacional
“Antigamente, os problemas eram resolvidos na bala”. Essa é a afirmação chave para “As Boas Maneiras”, porém, não surge da maneira mais óbvia e conservadora. Com essa ideia na mente e a câmera no chão, Marco Dutra e Juliana Rojas realizaram um dos filmes menos comuns entre as produções nacionais, e com lucidez e fôlego impressionantes. Balanceando o comentário social e uma história de terror, o filme consolida-se como um dos mais múltiplos da atualidade.
Os diretores, que já mostraram talento tanto juntos quanto em suas carreiras solo, parecem realizar um trabalho de policiamento sempre em defesa da coerência do filme. Hoje, pode-se perceber uma insistência do cinema nacional em produzir dramas realistas que buscam ter uma abordagem, se não universal, do país como um todo, que, pela grandiloquência, acaba se perdendo com muita facilidade – vide o apressado e mal realizado “Como Nossos Pais”, de Laís Bodanzky. O que não quer dizer que “As Boas Maneiras” não explore a condição do país em sua marginalidade. Não só faz, como desenha um perfil do Brasil.
É impossível não detectar um tratado sobre a herança da escravidão em Clara (Isabél Zuaa), protagonista negra que terá que lidar com o filho incomum (Miguel Lobo, ator-mirim brilhante) da personagem branca, sua patroa-sinhá-amante Ana (Marjorie Estiano). Não é à toa que a criança receberá o nome de Joel (referente à figura de Deus), e que sua relação com Clara será um divisor de águas na vida da moradora da periferia de São Paulo. Muito mais que uma ama de leite, a protagonista dará seu sangue para alimentar a vida dessa criança, que acabara de explodir a barriga de sua genitora em um horrível parto misturando os aliens de Ridley Scott e um banho de sangue que só os elevadores do Overlook Hotel de Kubrick poderiam proporcionar. Ao mesmo tempo, lembra o medo infantil (aqui, até mais literal) de Tourneur e o explícito perturbador de Cronenberg.
Mas mais do que tentar fazer qualquer tipo de reverência – há bem pouco disso, na verdade –, “As Boas Maneiras” tenta fugir do estanque, do gênero como algo superficialmente ridículo. Isto é, não basta tratar de uma história violenta com um elemento sobrenatural buscando uma fanfarrice que brinque com as expectativas e os limites do espectador. Desse tipo de cinema, absorve o que há de mais importante: o experimento da forma e a despreocupação em “mostrar”. No caso, desde o começo do filme, nos deparamos com uma São Paulo diferente: liberta de si mesma, a cidade é base para a computação gráfica e possibilita planos que poucos diretores seriam capazes de conceber. Uma enorme lua cheia ao fundo, pela janela da sala de jantar potencializa uma sequência que consegue enriquecer a camada “social” do filme quanto seu elemento sobrenatural.
Louvável o fôlego que “As Boas Maneiras” tem para se redescobrir. As duas horas e quinze poderiam ser muito bem uma hora e pouco, abarcando apenas a primeira parte, e ainda ser uma longa louvável. Mas Dutra e Rojas parecem não ser dos que tiram o corpo fora. O longa consegue explicar a diferença entre o extracampo e a omissão. Isto aparece especialmente com o monstro, cuja transformação é ao mesmo tempo exibida e sugerida, tal como grande parte da, digamos, ação. Mas também surge nos momentos mais cotidianos, mais ternos, sabendo dar espaço para a dor seja no enquadramento, seja com um dos brilhantes números musicais (nesses momentos, tentamos ver por que o filme não poderia se chamar “O meu guri”). Na sua alternância – de maneira mais clara entre a primeira e a segunda partes –, “As Boas Maneiras” é um filme de gêneros.
Nesse todo, encontramos uma fábula que desde o princípio se distancia de um conto moral, mas não afasta as característica de uma canção de ninar. O drama vem num carro de bois. E faz sentido o cavalo nunca galopar, senão nos últimos minutos, porque busca-se um outro espírito (antigo) em um cenário moderno. O flashback de Ana, contado por meio de belas ilustrações, buscam suprir uma imagem apagada pelo rancor por parte de sua família ao saber de sua gravidez: a recusa de encarar a realidade. Em complemento, há a festa junina do bairro, um palco para o real e o catártico se desenrolarem num clímax de terror e suspense. As cicatrizes e suas representações denunciam uma nostalgia tão violenta quanto lúdica e acertam o ponto nevrálgico de um passado doloroso.
Em noite de Lua Cheia, “As Boas Maneiras” chega para impressionar e mesmo que precise se reafirmar em uma ou duas decisões dramáticas, termina com um corte final arrasador e que não deixa dúvidas de que é um dos filmes brasileiros mais libertários dos últimos tempos.
*Esse texto foi originalmente publicado no site Bastidores.
As Boas Maneiras (idem, Brasil – 2017)
Direção: Juliana Rojas e Marco Dutra
Roteiro: Juliana Rojas e Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira, Andréa Marquee
Gênero: Terror, Thriller, Drama
Duração: 135 min