“A arte é um jeito de se fazer ouvir”: professora cria Museu do Isolamento com alunos do 6º ao 9º ano - Revista Esquinas

“A arte é um jeito de se fazer ouvir”: professora cria Museu do Isolamento com alunos do 6º ao 9º ano

Por Giulia Deker e Karina Almeida : setembro 14, 2021

A fachada do colégio é composta por diferentes expressões artísticas

Educadora carioca se inspirou na internet para realizar trabalhos de arte com crianças em escola no bairro Bangu, no Rio de Janeiro

Tudo começou quando ela tinha oito anos. Uma exposição sobre Salvador Dalí, aquele pintor do bigode engraçado, chamou a atenção da menina que nunca havia tido uma aula de artes. Foi amor à primeira vista. Hoje, com 32 anos, Fernanda Carvalho é formada em Artes Visuais pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e professora de artes para aproximadamente 400 alunos na Escola Municipal Leônidas Sobriño Pôrto, no bairro do Bangu, no Rio de Janeiro.

Professora de artes, amadora de projetos inovadores, youtuber para seus alunos e entusiasta do aprendizado dinâmico, Fernanda confessa: “eu não consigo me imaginar fazendo outras coisas”. Encontrou no Museu do Isolamento a inspiração para se reinventar e superar os desafios impostos pela pandemia.

“Você não tem acesso a esses alunos, a maioria não tem internet ou, se tem, não tem computador, ou, às vezes, é um celular para a família toda”, conta Fernanda. Ensinar a matéria sem ter contato físico com as crianças ou materiais necessários foi um problema que exigiu uma solução criativa.

As artes da pandemia

A educadora comenta que dar instruções remotamente foi um processo complicado:

– Eu quero que vocês façam um desenho expressionista baseado na aula – era a orientação dada por meio do Google Classroom.

– Mas, professora, o que é expressionismo? – uma pergunta comum em aula.

– Tá lá na apresentação… – respondia Fernanda, sempre paciente.

“Tudo me inspira no mundo da internet”, garante a carioca. A ideia que a guiou surgiu depois de ler uma reportagem sobre o Covid Art Museum. Após diferentes pesquisas, Fernanda chegou ao Museu do Isolamento.

A página foi criada em 30 de abril de 2020 pela criadora de conteúdo Luiza Adas, 24, para divulgar artistas sem boa visibilidade durante a pandemia. A paulistana formada em Relações Públicas pela Faculdade Cásper Líbero já anunciava atividades culturais da cidade de São Paulo em sua página pessoal, o que serviu de inspiração. No projeto atual, ela conta com a ajuda de poucas pessoas e faz a administração e curadoria de artistas.

“Vamos criar o nosso Museu do Isolamento, eu preciso saber como eles estão, eu preciso compreender como estão lidando com a situação”, reagiu a professora ao conhecer o projeto. Fernanda uniu a necessidade de criar um trabalho atrativo para as crianças e que, ao mesmo tempo, informasse sobre seu estado socioemocional de cada um.

A sala de aula em casa: criando o Museu do Isolamento

Analisou a página e as obras com os estudantes e sugeriu que fosse criado algo parecido pela classe. Podiam expressar seus sentimentos e emoções com qualquer material e linguagem artística. As reações das crianças, segundo ela, foram distintas: “Eu fiquei um pouco nervosa porque eu não sou tão criativa, aí eu pensei ‘ai meu Deus, vou tirar zero’, relata uma estudante de 14 anos do 9º ano*.

“A arte vem para isso. Ela é perfeita para você conseguir expressar coisas com palavras que a gente não pode falar”

Fernanda Carvalho

O prazo de entrega estipulado foi de duas semanas durante o mês de março de 2021. A aluna confessa ter entregado sua arte no último dia pois, para ela, foi difícil ter uma ideia diferente. “Mas, no dia que eu fiz, pensei nos padrões que todo mundo fez e pensei também no quanto é difícil viver nesse mundo se você não for um padrão”, comenta.

A professora conta que o processo foi acompanhado de muita insegurança por parte das crianças:

– Assim tá bom? – era a mensagem recebida por WhatsApp acompanhada da foto do trabalho.

– Pode pintar? – outro estudante.

– Tem necessidade de usar cor? O que você acha que com cor vai falar? – Fernanda respondia a fim de incentivar as crianças e afastar o velho mito “não sei desenhar”.

museu do isolamento

Fernanda Carvalho
Acervo pessoal

Fernanda relata que seus alunos são muito criativos e expressivos, algo que se refletiu no trabalho. Foram entregues 30 obras com diferentes estilos de expressão: colagens, artes digitais, desenhos, pinturas e muitas outras.

– Paulo, olha só o que as crianças produziram! – com os trabalhos em mãos, foi como a professora contou para o diretor.

A professora, a escola e os alunos

O diretor do colégio, Paulo Roberto, 55, frisa: “o momento me surpreendeu, mas a qualidade do trabalho, não”. Sua maior preocupação sempre foi a pandemia, pois trazia consigo muitas dificuldades e a exclusão digital. Em seu ponto de vista, seria difícil conciliar as aulas remotas, mas diz que não esperava nada menos de Fernanda. “Eu sei que não sai nada comum ali”, afirma.

Desde que começou a trabalhar na Escola Municipal Leônidas Sobriño Pôrto, a professora surpreende o dirigente. “A Fernanda dando aula tem brilho nos olhos”, destaca sobre a sensibilidade da educadora. “Ela entende a arte como algo tão importante no sentido de uma forma de expressar emoção e liberdade. E são coisas tão fortes que a Fernanda passa para os alunos”, descreve.

museu do isolamento

Paulo Roberto
Acervo pessoal

A arte imita a vida

Segundo Fernanda Carvalho, as obras entregues foram muito narrativas e pessoais. Entre os temas, estão questões emocionais, temas sociais como preconceito de raça e gênero e assuntos sobre a pandemia o cenário político. “Eles são pré-adolescentes, mas são muito antenados ao que está acontecendo”, assegura a professora. O diretor, que mantém uma relação próxima com os alunos e suas famílias, afirma que o contexto social possui enorme importância na criação das obras.

A proximidade com a realidade de cada estudante tem uma razão: além da formação acadêmica, eles têm a intenção de formar bons seres humanos. “A escola é muito capilar, sabe? Se espalha por tudo que é buraco, cada favela tem escola, cada rua tem escola. Não adianta você se transformar num profissional maravilhoso e não ter esse olhar de cuidado com os outros”, comenta Paulo Roberto. Por conta desse olhar, a escola também serve como rede de apoio tanto para as crianças quanto para suas famílias.

“A escola abraça todo mundo”

Paulo Roberto

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Repercussão no Museu do Isolamento

A educadora Fernanda garante que, apesar das inseguranças, os alunos adoraram o trabalho. A vergonha transformou-se em entusiasmo, principalmente, quando citou a possibilidade de serem publicadas no Facebook do colégio. “Eles adoram ‘se mostrar’, como eles falam”, explica. As obras ganharam uma proporção inesperada quando chegou ao real Museu do Isolamento.

Ao término da atividade, em março, a professora encaminhou uma mensagem para a fundadora, Luiza Adas, contando sobre seu feito. O contato foi postado no perfil e ganhou enorme repercussão. “O que mais me deixou feliz foi outros professores de outros estados querendo utilizar a mesma ideia, o mesmo projeto”, relembra Fernanda.

A importância da arte

Segundo Fernanda, o reconhecimento demonstra que professores precisam ouvirem e entenderem o contexto de cada aluno para mostrarem que a arte está em todo lugar. Para ela, saber a bagagem imagética de cada um é essencial e a arte tem potencial de identificação muito grande. Quando produzidas, Fernanda entende que o artista tem a sensação de alívio, observado nas obras de seus alunos.

“Às vezes, são muitas vozes que são silenciadas mesmo, e a arte é um jeito de se fazer ouvir”

Fernanda Carvalho

O diretor do colégio entende a arte como a fotografia do momento e uma possibilidade de superação da dor em períodos de dificuldade. Por isso, faz questão de influenciar a produção artística no ambiente. Seu relato é reforçado pelas lembranças de Jaqueline Batista, ex-aluna de Paulo que hoje, aos 41 anos, é psicóloga formada pela UERJ. Segundo ela, o professor sempre se dedicou intensamente à formação dos alunos como um todo, desde os valores até a visão crítica sobre o mundo.

museu do isolamento

A fachada do colégio é composta por diferentes expressões artísticas
Acervo pessoal

Jaqueline atua com psicologia na área educacional e ficou encantada ao ter acesso as obras por meio do ex-professor. “As crianças estão sendo estimuladas desde cedo a ampliar o potencial criativo e desenvolver recursos artísticos”, afirma sobre a maior aptidão para transformar as próprias realidades ao ampliar seus conhecimentos de mundo. Sobre o contexto de pandemia, a psicóloga afirma que a arte resgata uma sensação de pertencimento e de coletividade, essenciais para a saúde mental.

“A criatividade é a celebração e afirmação da vida”

Psicóloga Jaqueline Batista

“Eu sempre brinco que o Museu do isolamento fala sobre o mundo lá fora e o mundo dentro da gente”, comenta Luiza Adas sobre a capacidade de chocar e expandir horizontes. Para ela, o contato das crianças com artes, imagens e palavras abre espaço para maiores reflexões. “Ela consegue ter uma organização melhor, entender e absorver melhor essas questões”, afirma.

Paulo Roberto comenta que as crianças talvez ainda não percebam a importância, mas entende que o trabalho sem dúvidas as impactou. “Isso vai dar peso às próximas atividades. Eles vão perceber que são capazes de fazer coisas importantes para a vida deles. E eu luto por isso desde o dia que eu peguei meu diploma”, conta a professora que encabeçou o projeto.

Anos depois: o incentivo e o Museu do Isolamento

Ao final do trabalho e diante da proporção que tomou, o sentimento que a domina é o orgulho. Mesmo com as dificuldades do modelo remoto, Fernanda Carvalho se reinventou e inspirou seus alunos. Sua dedicação transformou também seu diretor e educadores de diferentes lugares que a conheceram por meio do Museu do Isolamento.

A menina de oito anos que nunca havia tido uma aula de artes cresceu. Criou, sem nem mesmo perceber, 30 novos artistas. E, aos olhos do pintor com o bigode engraçado, tornou-se uma artista também.

“Um verdadeiro artista não é aquele que é inspirado, mas aquele que inspira os outros”

Salvador Dalí


*A identidade e imagem da criança foram preservadas.

 

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