A história e o fardo do prédio que acompanhou o apogeu e o declínio do Centro Velho de São Paulo
Em primeiro de outubro, o dia ensolarado e com temperatura acima dos 30 graus adornava o emblemático e primeiro arranha-céu de São Paulo, o Edifício Martinelli. O tempo agradável, entretanto, não combinava com a atmosfera densa tecida ao longo da memória do prédio.
Ele foi idealizado pelo empresário italiano Giuseppe Martinelli e projetado pelo arquiteto húngaro William Fillinger. “Martinelli tinha o sonho de construir um edifício que não marcasse só a história de São Paulo, mas também a do Brasil e da América Latina”, diz Vanessa Ricarte, guia da visita ao prédio. A construção foi inaugurada em 1929, na glória do Centro Velho de São Paulo, que antes abrigava cafés, restaurantes e hotéis destinados à grande elite da cidade. Com seus 105 metros, foi a maior edificação da cidade até 1947 e, em seu ápice, dispunha de um hotel de luxo, o São Bento, e um cinema que davam maior prestígio ao imóvel.
“Porém, as décadas seguintes, de 1960 e 1970, foram um período de decadência do edifício. O Hotel São Bento faliu e os andares foram vendidos irregularmente”, relembra Ricarte. Após invasões, o Martinelli passou a ser conhecido como Grande Cortiço de Favela Vertical, tornando-se cenário de tráfico de drogas, prostituição e clínicas clandestinas de aborto.
Mesmo não mantendo todos os traços do prédio original, os anos de escuridão ainda estão cravados em cada canto da construção. Seja nas réplicas dos lustres que mal iluminam os corredores do hall ou nas escadas interditadas, tudo exala mistério. Há um elevador cujo acesso é proibido devido aos casos de atrocidades enterrados em seu fosso. “Lá, jogavam todo lixo da época da invasão. Foram encontrados fetos, animais mortos, cadáveres, tudo ali”, diz a guia. Davilson, uma das vítimas, foi assediado, estrangulado e jogado no fosso em 1947 por um assassino apelidado de “Meia Noite”. Neide, em 1965, também foi morta e, com marcas de tortura, atirada do prédio.
Dos seus 30 andares, os últimos quatro estão fechados e vazios, ressaltando o aspecto tenebroso da visita. Os 15 cômodos, percebidos ao olhar para o alto do mirante, serão possivelmente revitalizados, mas, por enquanto, permanecem esquecidos. Ainda ali, as contenções de ferro no beiral do terraço tentam prevenir situações semelhantes à última fatalidade ocorrida: um suicídio em 2017 que levou ao fechamento do monumento por dois anos.
O símbolo paulistano mantém vivo o legado de Martinelli com visitas guiadas todos os dias e comércio ativo nos primeiros andares. Todavia, as mortes deixaram uma mancha sepulcral difícil de ser apagada.