Estreia no Brasil Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, longa-metragem premiado que aborda questões indígenas e o relacionamento das pessoas com a morte
“Filho, entra na água que vou pegar um peixe para você”. Encantado e em conflito, o jovem índio da tribo krahô encara a água movimentada perto da cachoeira, mas não entra na dança do morto, o próximo ato é arremessar um galho que fica em chamas assim que toca na água. O filho, iluminado em tons de prata pela lua, volta floresta adentro. É assim que o filme Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos começa, com uma introdução poética e um pouco tímida de um tema gigantesco escondido na jornada do herói Ihjãc, tema esse a morte do pai? A saudade? Nossa relação com os mortos? Todos, e ainda mais além.
O protagonista é só um menino de 15 anos, casado com Kôtô, e pai de um bebê, Tepto. Ele precisa organizar o ritual funerário daquele que tenta seduzi-lo a entrar no rio, o seu pai. Uma vez que a cerimônia é completa, no entanto, o elo do filho com o morto precisa ser rompido e Ihjãc não está preparado para isso, nem tanto para se tornar pajé. Mesmo assim, os mecarõ viriam por ele caso não aceitasse seu destino, como avisa o pajé ancião, Crate. Na esperança que os espíritos o esquecessem, Ihjãc vai para a cidade dos não indígenas para retornar quando a chuva já estivesse caindo na sua aldeia da Pedra Branca.
A película estreou no Festival de Cannes em 2018, onde foi premiada. No mesmo ano, foi selecionada para competição nos festivais de São Paulo e Rio de Janeiro; agora, no dia 18 de abril, chegou ao cinema brasileiro. O longa é uma produção luso-brasileiro devido à sua dupla de diretores, Renée Nader Messora e o lisbonense João Salaviza. É classificado como ficção, embora possamos alargar a realidade dessa definição mantendo em vista uma notável preocupação documental no filme, dualidade que “permite uma aproximação diferente a cada sequência”, segundo Messora. O que é plena verdade e uma conquista da obra.
A direção intercala uma abordagem mais etnográfica (embora os cineastas reforcem que não tinham a pretensão de retratar os povos indígenas, nem mesmo os krahô como um todo), menos intrusiva, com cenas mais poéticas e um cuidado visual atento. A câmera em algumas cenas acompanha de perto os personagens, os segue de costas (como quando um dos espíritos persegue Ihjãc), retrata perfis na umbra da fogueira em um ritual, rostos brilhantes à luz da hora dourada, ou crianças dançantes com folhas de árvores em chamas.
A fotografia do filme é um trunfo explícito, já o som dele é um tesouro escondido, pois o filme não conta com trilha sonora. As araras, o fogo, a ruptura pelos anúncios de venda na cidade ou pelo ritmo do forró, a chuva, a caminhonete na estrada. Mais que um enriquecimento na experiência sensorial, é sempre um alferes de algo que está por vir, e um lembrete que mesmo sem a imagem fotográfica algo está presente naquele cenário, um terceiro olho para sua dupla de diretores. A captação sonora foi feita por Vitor Aratanha, que junto com sua companheira Amxykwyj, também cuidava da tradução da língua krahô para o português durante as filmagens. Os cânticos cerimoniais são as únicas passagens não traduzidas. Segundo Salaviza, a linguagem deles é uma língua ritual, um dialeto antigo do qual é possível entender partes e temas, mas não sua completude, como o é o latim para nós.
“E depois que chorarmos, acabou”. Na coda do filme, Ihjãc precisa voltar para a Pedra Branca, a tora de seu pai ainda espera para ser decorada e um ritual fúnebre precisa ser performado. Após um mergulho intenso na cultura dos krahô, uma crítica sucinta ao agronegócio que ameaça os povos indígenas há décadas, Messora e Salaviza retornam ao tópico cardíaco da obra: a relação dos krahô com a morte e a saudade. “Não namore com seu viúvo nem em sonhos. Em seus sonhos recusem a comida dos mecarõ“. Para eles, o morto é visto como uma ameaça aos vivos, por isso a pressa para realizar a cerimônia final, um marco do fim do lamento pelo ente querido e início do oblívio. Só demoramos um pouco para lembrar da juventude do protagonista e como é pesado o fardo de tornar-se pajé e apagar o pai da sua memória. Sua corrida, no final, é por algo mais universal, um plano comum entre povos indígenas e o homem branco, sobre o qual a escritora Ursula Le Guin escreveria “e no ventre do tempo começa todo fim … e morte, e chance”.
Serviço
IMS Paulista
Até o dia 30/04, sessões todos os dias
Avenida Paulista, 2424
(11) 2842 9120
Ingressos: R$20 (inteira) e R$10 (meia), terça a quinta. R$26 (inteira) e R$13 (meia), sexta a domingo e feriados. Podem ser comprados no IMS no dia do filme ou durante a semana no site do Ingresso.com