Crime, câmera e ação: qual o desafio ético de produções 'True Crime'? - Revista Esquinas

Crime, câmera e ação: qual o desafio ético de produções ‘True Crime’?

Por Danilo de Oliveira, João Acrísio, Marcus Francisco e Patrick Taconelli : janeiro 18, 2024

Os crimes reais já têm seu espaço reservado na mente de várias pessoas. Foto: Patrick Taconelli/ESQUINAS

Entenda o fenômeno do True Crime e suas questões éticas durante as produções audiovisuais, como a série documental “O Caso Evandro”

True Crime, popularmente traduzido como “crime real”, é o nome que se espalhou durante a última década para categorizar um novo gênero de produções de não-ficção. Focado na realidade dos crimes que chocaram o mundo, esse tipo de entretenimento vem formando uma legião de fãs atraídos pelos diversos aspectos da narrativa investigativa.

O que é True Crime?

Na década de 30, um fotógrafo nascido no leste europeu fazia sucesso com suas fotos dos crimes que aconteciam nas ruas de Nova Iorque. O fotógrafo em questão era Arthur Felling, mais conhecido pelo seu pseudônimo Weegee, autodidata que vendia suas fotos para diversos jornais dos Estados Unidos e Inglaterra. O que diferenciava Weegee dos demais fotojornalistas do período eram seus registros do crime, feitos muitas vezes antes da chegada das autoridades. Felling conseguiu permissão da polícia local para ter em seu carro um rádio ligado aos comunicadores policiais, e receber em primeira mão as ocorrências, por conta de todo o apelo popular carregado em suas fotos.

Inclusive é possível afirmar que o crime sempre dialogou com o entretenimento de maneira singular. É claro que qualquer um pode apontar que o crime e a violência são alvos de fascínio no mundo inteiro – basta relembrar produções audiovisuais como os filmes slasher, comuns nas décadas de 1970 e 1980 com clássicos como “Massacre da Serra Elétrica” e “Halloween”. Entretanto, antes mesmo das ondas recentes do gênero True Crime, brasileiros se reuniam nas salas de casa para assistir a programas classificados como sensacionalistas, que costumam narrar os mais polêmicos e cruéis crimes do momento, seguindo o mesmo espírito de urgência e apelo popular carregados pelo trabalho do norte-americano Weegee.

Alborghetti, Marcelo Rezende e Datena são alguns dos nomes que saltam da memória quando se fala do tema. Programas como “Cadeia”, “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente” são exemplos da presença do crime televisionado, transformado em um amálgama de jornalismo policial e entretenimento.

O True Crime, entretanto, não mira na indignação instantânea do telespectador, mas sim na construção de uma narrativa sobre os crimes relevantes, atuais ou não. Talvez mais próximos do tradicional “Linha Direta” – hoje comandado por Pedro Bial – mas ainda assim distintos, os livros, programas, filmes, documentários, séries e podcasts de True Crime procuram equilibrar suspense, investigação e entretenimento na criação de um produto que trata da vida real.

Algumas produções como o documentário “Caso Evandro”, buscam focar em apenas um crime com desdobramentos complexos. Outras exploram uma gama de casos, como a produção “Modus Operandi” de Carol Moreira e Mabê Bonafê. Mas algo que todas as produções desse gênero têm em comum é a crescente onda de interesse que promove essa variedade.

Segundo o portal Parrot Analytics, entre 2018 e 2021, o gênero carregou o crescimento de séries documentais ao redor do planeta e, em território nacional. Séries como “A Mulher da Casa Abandonada”, apresentado pelo jornalista Chico Felitti, e “Modus Operandi”, surpreenderam no ramo de podcasts, marcando respectivamente 3 milhões de ouvintes por episódio e 14 milhões de plays nas plataformas de streaming. Em 2022, o podcast apresentado por Chico Felitti foi o segundo mais ouvido do Spotify Brasil, atrás apenas do podcast “Podpah”. Já nos dados mundiais da plataforma, o podcast americano “Crime Junkie” ficou em quinto lugar na lista dos mais ouvidos.

O interesse pelo True Cime

O fenômeno do True Crime não foi ignorado em nenhum lugar. No Brasil entre o fim da década de 2010 e o início desta década, vários casos foram revisitados por produções audiovisuais. O brutal assassinato do casal Von Richtoffen foi estudado e adaptado para o cinema, com uma trilogia de filmes lançados entre 2020 e 2023. Adaptações como “O Caso Evandro”, “Isabella – O Caso Nardoni”, “Elize Matsunaga – Era Uma Vez Um Crime” seguiram o movimento. Já no exterior, séries no estilo de “Dahmer: Um Canibal Americano” se tornaram cada vez mais comuns. Mas de onde surgiu esse interesse pelo entretenimento ligado a casos reais?

As causas que levaram o público ao gênero podem ser confusas, mas dentro de uma linha do tempo recente é possível apontar para o início de uma tendência em 2014. Publicada originalmente em outubro daquele ano, a série de podcast “Serial”, criada por Sarah Koenig, tomou proporções inimagináveis ao tratar do assassinato da jovem Hae Min Lee. Discutindo os desdobramentos de uma investigação cheia de defeitos sobre um assassinato que ocorreu em 1999, os integrantes da produção buscaram produzir uma narrativa capaz de esclarecer o que teria acontecido no período do crime, investigação policial e julgamento para que Adnan Syed fosse condenado à prisão perpétua.

A obra, que durante a investigação produziu diversas reviravoltas, descobertas e provocou a libertação de Syed, se tornou um sucesso instantâneo – algo que não passou despercebido por produtoras do mundo inteiro.

Vale destacar, entretanto, que o surgimento do True Crime não está necessariamente preso na atualidade e nem focado apenas no Brasil. Além dos programas policiais mais antigos, o gênero já tinha elementos presentes nos jornais e livros do século XVII, que usavam o artifício do sensacionalismo. Crimes brutais sempre repercutiram dessa maneira, seja no boca a boca ou por veículos. Segundo o historiador Harold Schechter, em entrevista para a revista Veja, o desejo por crimes reais sempre esteve presente, seja por meio do consumo de sermões sobre crimes e pecados de infiéis ou pela inspiração na produção de ficções.

“A história de crime sempre vendeu. Edgar Poe é um exemplo disso, um clássico da literatura que todos gostam. O True Crime some e depois volta”, comenta Ari Vicentini, professor de ética jornalística da Faculdade Cásper Líbero.

Edgar Allan Poe escreveu, além de seus famosos contos, histórias focadas na investigação policial baseadas em eventos reais que continuam sendo publicadas até hoje e são consideradas precursoras de um gênero. É também o caso de “Psicose”, livro escrito por Robert Bloch em 1959 e adaptado aos cinemas pelo diretor Alfred Hitchcock no ano seguinte, que narra um crime cometido pelo assassino Norman Bates. Bates é um personagem fictício, assim como os milhares de personagens criados ao longo da história, mas teve inspiração em Ed Gein, um serial killer da pequena Plainfiel, cidade de Indiana, preso em 1957, período em que Bloch escreveu o livro.

Os crimes cometidos por Gein ainda inspiraram outras grandes produções, como o clássico “O Massacre da Serra Elétrica”, vendido como uma história real no período de seu lançamento, servindo de estratégia para atrair o público até o cinema. O filme, produzido com menos de 200 mil dólares, obteve mais de 30 milhões de dólares de bilheteria. Já em “O Silêncio dos Inocentes”, características dos crimes do serial killer foram incorporadas ao antagonista da produção vencedora de cinco categorias no Oscar de 1992.

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A mensagem apresentada no início de “O Massacre da Serra Elétrica” dá a entender que a história apresentada no longa-metragem é real.
Foto: Vortex/Reprodução

O caso de Ed Gein é um exemplo de como os crimes reais são espetacularizados. Registros de jornais que cobriram a prisão do serial killer, em 1957, mostram elementos claros dessa prática, como a escolha dos termos que compõem as manchetes. Schechter transformou o caso em um livro e, posteriormente, as minúcias foram transformadas em uma graphic novel, com diversas representações gráficas das ações do criminoso.

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Manchete espetaculariza o caso.
Foto: Oshkosh Daily Northwestern/Arquivo Pessoal

Histórias não-ficcionais, como o livro de Harold Schechter, ganharam espaço na literatura com o crescimento do New Journalism (em português, jornalismo literário). Autores como Gay Talese e Truman Capote foram pioneiros na produção de livros do gênero – que se consolidou durante as décadas de 1960 e 1970. Escrito por Capote, o livro “A Sangue Frio” foi publicado em 1966 e relata um assassinato ocorrido no interior do Kansas. Apenas um ano após a publicação, o livro já recebeu uma adaptação para os cinemas.

Nas décadas seguintes, mais e mais livros com histórias não-ficcionais passaram a surgir e, com isso, o True Crime foi ganhando força. Um exemplo disso é o livro “Mindhunter”, publicado em 1995 e escrito pelo ex-membro do FBI John Edward Douglas, que detalha diversos casos de serial killers investigados por ele. O livro posteriormente recebeu uma adaptação, em formato de série, produzida pela Netflix e com produção executiva de David Fincher.

Fincher já tinha experiência na adaptação de crimes reais para o audiovisual, dirigindo o filme “Zodíaco”, que detalha a investigação dos crimes cometidos pelo serial killer conhecido como “Assassino do Zodíaco”. O filme adapta o livro de mesmo título, publicado em 1986 e escrito por Robert Graysmith.

É possível afirmar com segurança que o True Crime atrai o público geral com força maior do que outros gêneros. Podcasts, filmes, séries, documentários e vídeos sobre o tema conseguem abarcar uma audiência fiel, que engaja nos conteúdos e mantém as produções relevantes.

O público do True Crime

“Adoro crimes, não sinto medo ou levo sustos, a graça é o enigma”, assim a escritora Ilana Casoy descreveu o gosto pelo gênero durante evento realizado pela editora Companhia das Letras. Casoy explica que a sua trajetória na literatura ligada ao crime se inicia pelo interesse no enigma imposto na maioria das investigações policiais.

Em entrevista à revista IstoÉ, a neuropsicanalista da USP Priscila Gasparini Fernandes, afirma que o gosto e atração por violência é, de certo modo, natural. E pontua que o que tem mudado é o local onde se consome essa violência, saindo das praças públicas e tomando o ambiente do entretenimento. A razão do consumo, segundo Gasparini, parece estar fortemente ligada com a satisfação da curiosidade de um modo relativamente seguro. Ou seja, segundo a neuropsicanalista, para o espectador também existe o alívio de saber que a violência não ocorreu com ele.

Segundo levantamentos da Civic Science, o público feminino é o que mais se atrai pelo True Crime. Quando se fala de gênero mais ouvido de podcasts, as mulheres chegam a alcançar mais de duas vezes o número de homens. Em entrevista ao Metrópoles, os produtores do podcast Modus Operandi, afirmaram que apenas 30% dos seus ouvintes são homens.

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Ética ou audiência?

A discussão sobre os limites éticos do retrato de violência em jogos, filmes, séries e produções de áudio sempre existiu. Não são novos debates sobre projetos de lei que devem determinar que tipo de conteúdo é aceitável para o público, quais são as consequências dessa exposição desenfreada e se as produções de cenas violentas são necessárias no entretenimento. Mas é quando a violência deixa de ser um roteiro produzido do zero em uma sala e começa a se basear em pessoas reais.

Por exemplo, a famosa série “Dahmer: Um Canibal Americano” retrata a fundo um dos criminosos mais notórios dos Estados Unidos e toda sua perseguição. Uma de suas vítimas, Errol Lindsay, teve sua história detalhada na produção. A presença de seu assassinato na série e a forma brutal como foi abordada trouxe à tona os sentimentos de tristeza e desconforto por parte da familia ao ter sua morte representada em um dos streamings mais bem sucedidos do mundo. Apesar de uma estratégia que pretende cativar o telespectador por meio do suspense e da construção de uma narrativa interessante, é necessário ressaltar que as produções lidam com pessoas reais e que continuam sofrendo com os desdobramentos dos crimes que são transformados em produções audiovisuais.

Algumas pessoas, entretanto, consideram que é possível e necessário debater os temas que envolvem os crimes de maneira responsável. Em entrevista à ESQUINAS, a co-diretora do documentário “O Caso Evandro”, Michelle Chevrand, afirma que o processo de criação dos conteúdos de True Crime buscam se distanciar da pura morbidez e violência: “Acho que essa produção já evoluiu muito e a sua abordagem já melhorou também”, mas a procura pela visualização e pelo choque ainda atrapalham. “Em nome do clique, você fica menos interessado em dar a notícia e se preocupa em impressionar”, completa a co-diretora.

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Aly Muritiba e Michelle Chevrand, co-diretores da série “O Caso Evandro”.
Foto: Aly Muritiba/Instagram

Segundo o professor Ari Vicentini, em contraponto a Chevrand, o sensacionalismo, um dos problemas do conteúdo True Crime, ainda está distante de ser superado. Na busca pela audiência, os produtos são esticados e espetacularizados. O objetivo é manter a audiência, trazendo suspense, terror ou comédia. Com isso, as produções perdem as características éticas jornalísticas e documentais. “Hoje, o True Crime está mais perto da diversão do que da informação”, afirma Vicentini. Para ele, a transformação desses materiais em espetáculos não tem nenhum intuito informativo, apenas entretenimento. O professor adiciona que transformar conteúdos não-ficcionais em séries ajuda na criação de conteúdos mentirosos, que aumentam o espetáculo e o público.

“Tudo o que é seriado pode ser um problema, porque você precisa manter a audiência. E para manter a audiência, é necessário seguir velhas fórmulas”, como a criação de narrativas, que muitas vezes podem transformar a história em algo sensacionalista. “Esse é o perigo, levar a narrativa para um caminho antiético”, completa Vicentini.

A demanda por uma série que possa entreter o público, cria um círculo vicioso, tanto para os espectadores, quanto para o estúdio que produz o conteúdo. O público, por um lado, cria expectativa e, muitas vezes, descarta o sentido ético. Os produtores, claro, se aproveitam e lançam o que todos esperam.

Mas não são todas as produções que seguem a mesma régua sensacionalista. Apesar da luta contra a pressão de estúdios, que buscam conteúdos capazes de chocar o público, existem experimentos na indústria que seguem a contramão. Pegue de exemplo “O Caso Evandro”, que tratou do tema de maneira cautelosa e ética, sem romper limites para conquistar audiência.

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Os 7 acusados do “Caso Evandro”.
Foto: O Caso Evandro/Globoplay

A co-diretora da série relemebra que a equipe foi cautelosa durante a criação, buscando evitar a espetacularização da trama, resultando em uma produção de meses: “A escrita dos roteiros durou por volta de 8 meses, pois o processo do ‘Caso Evandro’ tem 15 mil páginas, é impossível ler tudo”. Um dos elementos que ajudou no processo de criação foi a presença do jornalista Ivan Mizanzuk. “O Ivan tinha tudo na cabeça, era uma enciclopédia do caso. Ele já havia feito uma grande pesquisa por conta do podcast que tinha produzido, então as ideias estavam bem filtradas”, destaca Chevrand.

O podcast que serviu de inspiração para a série documental teve 36 episódios de uma hora e meia sobre o caso, mas devido a questões de viabilização, sua adaptação se conteve em nove episódios de 45 minutos, o que reduziu as possibilidades de histórias a serem contadas. Em séries de sucesso é muito comum esperar uma continuação, caminho que a produção de “O Caso Evandro” preferiu não seguir por medo de derivar dos fatos reais.

A série pretende investigar os desdobramentos do caso sem expor o público a cenas chocantes. Um desafio quase impossível quando se pensa em preconceito religioso e tortura, entretanto os temas e as vítimas são abordadas com cuidado e respeito. “Fiquei lendo ele o tempo todo. Esse homem tem muita dor, como é que vou falar do Leandro sem causar mais dor? É necessário muito respeito e ética profissional”, comenta Chevrand, sobre a entrevista com o pai de Leandro Bossi. Bossi desapreceu em 15 de fevereiro de 1992 na cidade de Guaratuba, litoral do Paraná. Os restos mortais da criança só foram identificados 30 anos após o seu sumiço, em junho de 2022. O caso permanece sem solução.

O impacto do ciclo de violência no entretenimento

A realidade denuncia que o tratamento da violência no entretenimento e veículos no geral tem impacto direto na sociedade – bom ou ruim. A propagação dos casos, o tratamento e condenação de infratores e a exposição dos crimes geram inevitavelmente outras ações na esfera pública.

O impacto das produções é justamente o que convoca a polêmica sobre a necessidade ou não de limites éticos. Aqui se fala de crimes reais, com pessoas que existem fora da tela, o que torna ainda mais difícil mensurar quem é afetado. Na cobertura de casos criminais, há uma certa conduta a ser seguida para não incentivar outras pessoas a cometerem crimes, isso demonstra a necessidade da discussão acerca de limites.

Hoje, os protocolos presentes na cobertura de crimes e acidentes dentro do noticiário brasileiro foram revistos devido a erros cometidos no passado com jornais que glorificavam a violência e transformavam o crime em um espetáculo. Coberturas como o de Eloá ou Maníaco do Parque, serviram de alerta tardio para uma mudança drástica. Apesar da cautela, grandes emissoras, estúdios e produções permancem com seus conteúdos sensacionalistas, onde a ética jornalística é descartada.

Evandro desapareceu em abril de 1992, em Guaratuba, no trajeto entre a escola e a casa dele.
Foto: @mizanzuk/X

O True Crime é um gênero que parece viver em ondas, que estão longe de serem extintas e, nessa condição de produção cultural baseada na realidade, é capaz de produzir frutos bons e ruins, que devem ser analisados. As delimitações éticas do tratamento de um crime transformado em entretenimento, parece ser um dos fatores que contribuem para o surgimento de mudanças importantes. Claro, não há exatamente um consenso sobre o tema em pesquisas acadêmicas, até porque a tendência do True Crime no streaming não deixa de ser recente, mas os desdobramentos envolvendo o gênero confirmam que, talvez, as produções possam oferecer muito mais seguindo algumas regras.

Editado por Ronaldo Saez

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