Novo drama familiar de Kore-eda mostra um grupo de pessoas que se une pelo bem comum
*O texto a seguir foi publicado originalmente no site Bastidores, como parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Se o título em português do novo filme de Hirozaku Kore-eda, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, esconde a característica marcante dos personagens do longa (a tradução mais próxima do original seria “família de ladrões”), é, ao mesmo tempo, um resumo objetivo da obsessão temática do diretor. Ao longo de sua filmografia, Kore-eda vem cultivando um interesse particular pelas mudanças que um evento específico provoca na vida de seus personagens. E, realmente, talvez seja a família, como elemento de vivência, o núcleo em que os gestos cotidianos se revelam com mais evidência. E é, definitivamente, o espaço de conforto de Kore-eda – apesar de ele tentar alternar suas produções com filmes que fujam dessa temática (Air Doll, O Terceiro Assassinato).
Em Assunto de Família, Kore-eda deixa claro que sabe trabalhar com diversos personagens, com formações absolutamente diferentes, uni-los de forma tão intimista e sensível quanto em Depois da Tempestade, um de seus últimos filmes. Interessa ao diretor, à maneira que interessava Yasujiro Ozu, sua grande referência, ver o que permanece das relações tradicionais em um espaço, por assim dizer, caótico.
O longa se concentra em uma família de pessoas deslocadas de suas origens – um casal de adultos (Lily Franky e Sakura Andô), uma jovem adulta (Mayu Matsuoka), um garoto pré-adolescente (Jyo Kairi) e uma menina (Miyu Sasaki) – que se unem pelo elemento comum do abandono ou da fuga para morarem juntos na casa de uma velha senhora (Hatsue Shibata) na periferia de uma metrópole. O ambiente bagunçado e apertado remonta estruturalmente tanto à casa da vó, à casa dos pais, como a uma comunidade estudantil (cada um levando sua vida, mas aprendendo juntos a conviver e compartilhar experiências) e nos deixa muito mais próximos da investigação que a obra de Kore-eda faz sobre seu país e seu cinema.
Nesse mesmo ambiente-personagem acompanhamos a construção de uma certa sacralidade no íntimo daquelas relações, minimalistas de tão fragmentadas (um jantar, uma noite de ano-novo, uma transa num dia chuvoso…). A partir dessa junção de pequenos momentos que parecem deslocados e das transformações das personagens (de suas passagens de pessoas que vivem juntas para posições familiares, das adaptações e sacrifícios que tais mudanças significam), assim como é estratégia de outros de seus filmes, Kore-eda cria as expectativas para melhorar seu ápice dramático.
O apego criado à família é subvertido no terceiro ato, a partir de um gesto desestabilizador que permite a entrada de um mundo exterior (a sociedade, as Leis) e desconstrói as imagens que temos até então. Por um lado, a cena na praia (mais belo e melancólico momento do filme) deixava clara a intensidade daquelas relações em um ambiente análogo à intimidade cotidiana. Enquanto isso, depois que a característica criminosa dos protagonistas vem à tona, todo um universo de informação e luzes (a atenção do mundo material contra o fluxo contemplativo, taciturno e tímido, que sobrevive apesar do capital) arrebenta a aparência daqueles laços.
Nesse gesto, Kore-eda exibe toda a potência dos seus afetos, ainda que, particularmente, pareça cair em uma certa inabilidade de lidar com climaxes. Depois de mostrar a outra face das personagens frente ao choque do mundo exterior, o filme se arrasta por conclusões incompletas, até deixar evidente que se importou em colocar em pauta cada transformação de cada personagem – o que nem sempre é bom para o roteiro, visto que beira algumas armadilhas, de dramas pouco potentes.
Kore-eda repercute o espírito de Ozu, à sua técnica, com uma misè en scene rigorosa, com a câmera sempre na altura dos personagens, nivelando-os ao espectador, em uma mesma base humana, espirituosa – que só precisa arriscar-se mais para não trombar em empecilhos morais que pouco acrescentam à proposta.