É isto um Godard? - Revista Esquinas

É isto um Godard?

Por Henrique Artuni : maio 12, 2018

Novo curta atribuído a Jean-Luc Godard seria supostamente um fake produzido por militantes ambientalistas

Enquanto a competição corre solta em Cannes, inclusive com o novo longa (oficial) de Jean-Luc Godard, “Le Livre d’Image”, os cinéfilos do mundo todo tiveram uma surpresa em suas telas: um novo curta-metragem do mestre francês. Publicado no YouTube da revista online Lundimatin,“Vent d’ouest” seria um apoio do cineasta à ZAD (zona a defender) em Notre-Dame-des-Landes, um grupo de ambientalistas que luta para evitar a construção de um aeroporto na cidade, no oeste da França.

No final de abril, a Lundimatin publicou uma carta aberta do grupo militante, na qual clama pelo apoio de Godard no próximo festival, para que ele conseguisse protestar pelo grupo e mostrar ao mundo que arte é “engajamento, e não espetáculo ou uma indústria”. Com o clima de propício das comemorações sobre 68, a proposta pode parecer tentadora para um artista que desejasse reafirmar sua politização.

O curta, legendado em português por fãs, você encontra aqui:

Na própria manhã de quarta, no entanto, Fabrice Aragno, produtor de Godard, afirmou à rádio Europe 1 que se tratava um fake. O cineasta em si não se manifestou e provavelmente não se manifestará, visto a première de Adeus à Linguagem em Cannes, à qual não compareceu. Em vez disso, fez uma carta fílmica dirigida aos diretores do festival, justificando porque não vê mais sentido em visitar a Croisette.

Godard nunca foi unanimidade no meio cinéfilo. Com propostas de forma e conteúdo radicais, ora demais politizados, ora demais abstratos e estetizantes – principalmente após os filmes de 1967-68 –, o cineasta sempre foi alvo de cinéfilos e críticos mais puristas, que veem no seu cinema apenas o ridículo e o inacessível. Ao saberem que o filme é falso, formou-se uma ocasião perfeita para seus detratores, que puderam livremente atacar os fãs, que seriam incapazes de diferenciar um “falso” e um “verdadeiro” Godard.

Superficialmente, é verdade,“Vent d’ouest” tem as caraterísticas do Godard ensaístico dos últimos anos: letreiros em tipografia simples, sobrepostos, em branco ou em vermelho sobre um fundo preto; imagens digitais em contraste com trechos de filmes antigos; pinturas em contraste com fotografias; narração em off; trilha de música clássica e uma mixagem de sons das mais diversas fontes. Curiosamente, a voz em off que acompanha todo o curta se parece muito com a voz rouca de Godard, outro aspecto que aumenta a credibilidade do fake.

O fato é que o cineasta trabalha com máximas e citações ao longo de sua extensa filmografia, recontextualizadas a cada obra. Por isso, além de uma imitação, é possível que a própria narração seja uma colagem de outros filmes. Mas, afinal, seria a validação do “autor” elemento tão necessário para validar as reflexões do filme?

“Outrora, só havia os cineastas”

Ferramentas cada vez mais intuitivas ajudam pessoas que nunca tiveram contato com edição de áudio e vídeo a fazer um volume monumental de conteúdos todos os dias. Só mesmo a poesia para conseguir distinguir a atenção (o brilho encantador da tela do celular, que parece sempre guardar um mundo de maravilhas, as quais nunca aproveitaremos totalmente) da contemplação (incompatível com nossa rotina) sem partir para saudosismos.

Não à toa, “Vent d’ouest” tem um início impactante. Um piano é interrompido por uma série de tiros e gritos. No centro da tela surge “thrène” [trenodia], um poema de lamentação à NDDL (Notre-Dame-des-Landes). Preenche a tela um Saturno de Goya (o horror), com as cores estouradas (a possibilidade da imagem digital). “Outrora, só havia os cineastas”, começa a narração. Um discurso sobre o atual reinado dos técnicos (da grande escala, da TV, do audiovisual, da polícia), infiltrados no nosso cotidiano e que forçou o cinema a se esconder nos recônditos do capitalismo. Passa a valer a objetiva (a lente), e pouco importa o olho de quem olha.

Para a câmera do helicóptero que acompanha a ação policial na ZAD, não importa a agonia, mas o objetivo de vigilância, da morte, da dita segurança. A técnica sobrepõe o gesto, e a fumaça dos veículos que destroem a resistência não tem a mesma grandeza de um avião cruzando o céu azul como um pintor enfrentando o branco da tela, que Godard mostra em Paixão (1982). É a mesma câmera que logo mais estará implementada nos telões de anúncios nos metrôs, captando as reações dos passantes à publicidade, identificando seus dados.

A rotina dita as conservadoras palavras de ordem, aquelas de acordar um batalhão para mais um dia de luta pelo sistema (as imagens são de “La petite Lise”, de Jean Grémillon). Por volta de 2500 policiais participaram da operação para despejar os ativistas da ZAD. As imagens e os sons da vida, representadas pelo quadro “Na cama, o beijo”, de Toulouse-Lautrec, não podem existir mais – são remodelados pela técnica em “estruturas de morte”.

Ainda que se tente afastar os dois espectros, estamos em um momento em que arte e militância se encontram. Infelizmente, a maior parte dos casos essa aproximação se torna banal, didática. Em seus gritos de recrutamento, qual seria a diferença entre a resistência e a reação dos sistemas? E ainda, onde estaria a fronteira do profundo sentido de política e a arte politizada?

O quão lindo e potente não se mostra, então, que um grupo de manifestantes políticos se aproprie justamente de um dos maiores poetas das imagens, mostrando como o Crtl+C, Ctrl+V (hoje, comum desde os trabalhos de escola aos mais descarados plágios) pode ser mais do que um atalho. Ter ou não ter a mão de Godard, nada importa para o anônimo, o nickname que também atua do alto do seu Movie Maker, ou do YouTube. Nos anos 70, em um texto sobre cinema militante, o crítico francês Serge Daney se questiona: “Um cineasta testemunha de seu tempo? Um cineasta testemunha de suas imagens? O que importa, se a testemunha está presente e não se deixa anular por suas imagens, se ela inscreve em algum lugar sua carne e ossos”.

Se não foi Godard que agiu, os grupos revoltosos agiram em seu nome, mas tendo compreendido que o cineasta não filma a revolta que não possa falar de si mesma, analisar-se, que não tenha encontrado sua língua, sua teoria e sobretudo sua retórica. Mais que admiradores da obra de Godard, os militantes se mostraram aqui os alunos que, se não superaram o mestre, falam uma mesma língua, capaz de encontrar na mesma pedagogia sua “erva” resistente, que floresce nesses interstícios de capitalismo.

No final, há uma mão que aponta para o oeste. É o oeste da França, onde está Notre-Dame-des-Landes, mas também o Ocidente do capitalismo, das imagens de morte. Essa mão em close costura, enfim, a referência do título à “Le vent d’est”, de 1970, do Godard mais engajado. No longa, Glauber Rocha aparece como uma placa, apontando para o cinema de Terceiro Mundo, divino e maravilhoso que, se hoje pode parecer datado, continua “perigoso, divino e maravilhoso”. Cinema esse com o qual o fake comunga, e a ZAD clama: não temos tempo de temer a morte, ainda.