Em um ambiente de covid-19, boicote e críticas, a releitura de Mulan de 2020 traz grandes diferenças em relação ao original de 1998
Depois de ter seu lançamento adiado devido à pandemia do coronavírus, o longa ambicioso Mulan foi disponibilizado no começo deste mês no Disney+, que estará no Brasil a partir de novembro. O live-action reconta a lenda chinesa de Hua Mulan e, diferente de sua versão animada, muito bem recebida, foi alvo de críticas, boicote e politização. Isso por conta de cenas que foram gravadas na China, acusada de violações aos direitos humanos, e de agradecimentos a autoridades chinesas no final do longa.
A animação Mulan (Disney) foi o sétimo filme mais visto de 1998, com uma bilheteria de pouco mais de 300 milhões de dólares. Aclamada pela crítica, teve nota 7,6 no IMDb (Internet Movie Database, base de dados de filmes na internet, em tradução livre), além de ter sido indicada a diversas premiações como Oscar, Globo de Ouro e Grammy, todas relacionadas à sua célebre trilha sonora.
O projeto da Disney de apostar em histórias antigas com uma nova abordagem vem fazendo sucesso. Nos últimos anos, vimos clássicos como O Rei Leão, Aladdin e Mogli voltarem às telas, agora em live-action. Apesar de ter sido lançado diretamente na TV,Mulan, estrelado pela chinesa Liu Yifei, foi o mais caro deles, com orçamento de mais de 200 milhões de dólares à disposição da diretora neozelandesa Niki Caro.
Entenda algumas polêmicas do live-action Mulan e suas principais diferenças em relação à animação. ATENÇÃO: spoilers daqui para a frente.
Mulan sem Mushu é golpe?
O dragão vermelho Mushu, dublado por Eddie Murphy e, na versão brasileira, por Mario Jorge Andrade, era o alívio cômico da animação, com seu senso de humor infame e jeito de malandro.
Justamente por sua malandragem, Mushu não aparece no longa. A imagem do dragão, animal sagrado na cultura chinesa, não era bem recebida na China. Ele foi substituído por uma fênix, sem falas, que cumpriu o objetivo de deixar o filme mais sério.
O produtor, Jason Reed, confirma essa versão e explica que o dragão é símbolo de respeito, força e poder, por isso o público chinês não gostaria de vê-lo como um brincalhão. A diretora do filme afirmou em uma entrevista que a retirada de Mushu foi para não fugir do realismo, uma ambição da versão 2020.
A proposta também resultou na retirada da avó de Mulan, do grilo, do cachorro, dos ancestrais e dos amigos da protagonista no exército, que foram substituídos. Adeus também aos números musicais: na proposta mais séria, não há espaço para o épico cômico de “Homem Ser”.
Alguns saem, outros entram
O live-action é uma verdadeira releitura do clássico e, além de retirar antigos personagens, se deu a liberdade de criar dois novos: a bruxa e a irmã mais nova de Mulan.
A irmã tem participação discreta, mas exerce um papel de antagonismo a Mulan, que respeita as tradições. Já a bruxa é o novo fio condutor da história, a personagem que molda toda a jornada heroica da protagonista, aparecendo nos momentos cruciais.
Apesar da contradição na proposta de passar mais seriedade em um longa com um personagem mágico, a bruxa é mais uma mulher forte, que auxilia o desabrochar do poder de Mulan.
Uma nova construção da protagonista
Diferentemente da animação, no live-action Mulan nasce com um dom. Logo na primeira cena, há uma passagem em que a protagonista ainda criança mostra destreza com movimentos de luta dignos de uma superheroína.
A Mulan que conhecíamos não era uma grande soldada (principalmente antes de conhecer o capitão Shang, também limado na versão 2020), mas aprendia rápido: era astuta, perseverante e determinada. Supera, assim, a escalada do tronco, tarefa inacessível aos homens. A protagonista do live-action, por sua vez, está no terreno da dádiva concedida pela natureza. Mulan esconde seu verdadeiro potencial desde o princípio e, quando finalmente seus poderes são postos à prova, se mostra muito mais capaz que seus colegas, sem a exigência de uma jornada de superação.
Poucos personagens são efetivamente desenvolvidos — a exceção é Mulan, cuja jornada é ricamente explorada. O apego à família convive com a mulher que derruba barreiras e se torna general, ajustando a mensagem ao empoderamento feminino dos dias de hoje.
Os principais elogios da crítica especializada ao filme vão para a montagem, cenário, figurino e a estética no geral, que fizeram jus ao altíssimo investimento da Disney. Devem ser recompensados com indicações a muitas premiações.
A avaliação do filme no IMDb atualmente é de 5,4 – uma diferença de quase 2,2 em relação à animação. No agregador de críticas Rotten Tomatoes, Mulan tem 75% de aprovação de críticos e 51% do público. Vale lembrar que o longa ainda não está disponível em vários países, mas a Disney já se diz satisfeita com o desempenho da produção.
A essência do novo filme é tão diferente da animação de 22 anos atrás que uma comparação soa até mesmo injusta. Não espere um remake: ajuste as expectativas para uma releitura.