Meu coração é vulgar - Revista Esquinas

Meu coração é vulgar

Por Henrique Artuni : novembro 1, 2018

Um movimento de paixão, idolatria ou piada interna? Um grupo de cinéfilos no combate contra o “bom gosto”

Na tarde de uma terça-feira, Arthur Tuoto, cineasta e crítico paranaense, fez uma postagem em seu Twitter. “Preparando uma aula sobre a cinefilia pós-moderna aqui”, escreveu e anexou uma imagem comparando o perfil de Eduardo Bolzan de 2013 e o de 2017. Nesse período de quatro anos, o rapaz que antes tinha como filmes favoritos Pulp Fiction, Magnólia, Drive e Amnésia — obras razoavelmente conhecidas e que o grande público de cinema costuma gostar. Agora, dá destaque para O Império do Desejo, O Massacre da Serra Elétrica 2, Pompéia e Candyman — longas que não costumam povoar o repertório nem do grande público nem do cinéfilo médio. Uma seta entre os perfis apontava: efeito vulgar. “Bolzan com certeza meu caso de maior orgulho…”, Tuoto postou em resposta ao seu próprio tweet.

Arthur Tuoto é um expoente do autorismo vulgar na comunidade cinéfila do Letterboxd, rede social em que usuários catalogam e avaliam com estrelas os filmes a que assistiram. As opiniões de Tuoto, como se pode perceber, não são daquelas que respeitam a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ou quaisquer outros prestígios midiáticos. Típico do tal autorismo vulgar, que por definição contraria o consenso de um cinema civilizado, defende o “mau gosto”, em oposição ao bom gosto defendido por críticos de grandes portais, e a fanfarrice, partindo sempre de uma base teórica.

Ele não está sozinho com as suas convicções e vem influenciando outros cinéfilos, como é o caso de Bolzan. “Um espectro ronda o Letterboxd — o espectro do vulgarismo…”, é a epígrafe de A ameaça clubista, uma das listas de filmes criadas pelo perfil dos Corações Vulgares, dentro do Letterboxd. O avatar é uma foto do jogador Adriano Imperador fazendo com as mãos um C e um V, símbolo do Comando Vermelho. Sobre a imagem, estão inscritas as iniciais do grupo.

Os CV, além de existirem no Letterboxd, também são um grupo de WhatsApp com 20 pessoas. Criado por Daniel Pilon e batizado por Tuoto, reúne um pessoal que debate cinema no Twitter desde 2014 e que compartilha visões semelhantes. “Mas com certeza o Letterboxd deu uma bombada. Acho que o Twitter funcionava para catalisar um pouco as coisas nisso”, afirma Tuoto. Segundo o crítico, no Twitter, conseguia-se uma comunicação mais direta e imediata em contraposição ao Facebook, que “virou um lugar muito institucionalizado para algumas coisas, tanto pela presença das empresas como de um círculo social-familiar muito forte. O Twitter dá uma liberdade maior”.

Cartaz do filme O Massacre da Serra Elétrica 2 (1986), de Tobe Hopper
Reprodução

Algumas personalidades da crítica brasileira já haviam prenunciado opiniões singulares em revistas como a Paisá, Contracampo (ambas encerradas) e Cinética (ainda atuante), a que só depois o vulgarismo conferiria unidade. Dentre elas, está Filipe Furtado. Com mais de 2.700 seguidores no Letterboxd, Furtado tem uma intensa atividade na rede. Registrou, até a escrita deste texto, 907 filmes vistos ou revistos em 2018, totalizando 19.079 obras, entre longas e curtas. Além de espectador, ele comenta grande parte deles, mesmo que em poucas linhas. E o que pode parecer despretensioso pode ser também visto como um material riquíssimo. “É uma descentralização mesmo. Aconteceu isso com os blogs, ainda mais na fase pós-Contracampo. E agora rola bem forte com o Letterboxd e até com youtubers, em algum sentido”, complementa Tuoto.

Furtado, uma espécie de avô dos Vulgares, porém, não concorda tanto com a nomenclatura, que pode ser limitadora. “Da minha parte, é mais uma questão de manter a cabeça aberta para experiências diferentes e ter sempre em mente o quanto as suas preferências também servem para limitar o que você assiste”, diz. Desconfiado de redes sociais no geral, crê que espaços como o Letterboxd podem produzir muito material ruim. “Mas acho que, para um cinéfilo, é possível criar um sentimento de comunidade e, especialmente para essa garotada mais nova, uma boa oportunidade para treinar o texto. Acho que escrever sempre é importante”.

Uma nova geração

“O @bhlpires [Bruno Pires] tuita dizendo que tá começando a gostar de mother! e depois apaga……. ASSUME AÍ”, tuitou Tuoto na manhã de 26 de outubro. “Tá com medo das represálias do clubinho”, afirmou logo em seguida. Na ocasião, referiu-se a mãe! (com letras minúsculas e ponto de exclamação), último filme do diretor Darren Aronofsky, lançado em setembro de 2017 no Brasil. A recepção da obra passou longe de ser unânime, seja na mídia ou nos clubinhos. Antes que Tuoto tecesse vários elogios ao filme, integrantes de outro grupo já bombavam mãe! com péssimas notas — duas estrelas, quando muito —, fazendo comentários como “filme de universitário”, “espertinho, daqueles que sintetizam tudo que há de pior no cinema” ou “‘Churrasco na Casa do Boça goes deep”, em referência ao programa humorístico Hermes & Renato. Eram os Pós-Vulgares.

Nascidos no começo de 2017, a partir da movimentação dos CV, os Pós-Vulgares reuniram, da mesma forma, usuários do Twitter que debatiam cinema em um grupo do Telegram, aplicativo concorrente do WhatsApp. Ainda que as discordâncias em relação a mãe! possam parecer taxativas, é tudo parte de um jogo de atenções que satiriza o próprio extremismo. Os Pós querem provocar os intransigentes defensores do bom gosto.

O perfil no Letterboxd não nega a origem: como foto de perfil, Carla Ribas e Kleber Mendonça Filho, de Aquarius, seguram cartazes no Festival de Cannes não contra o golpe no Brasil, mas anunciando “São filhos do Arthur, logo arthousinhos enrustidos” — termo que Tuoto usa para denominar filmes que têm muito mais de artificial do que de inteligente. Como filmes favoritos, o grupo aponta Click, protagonizado pelo comediante Adam Sandler e, até pouco tempo atrás, Pipocando: Entenda Donnie Darko – Explicação Completa, um vídeo do YouTube. Além desses, os Pós-Vulgares levam “em alta conta” Felipe Neto: Minha Vida Não Faz Sentido, um show de stand-up, e desprezam Hatari, clássico americano de Howard Hawks, um dos prediletos de Filipe Furtado.

Tudo não passa de uma grande piada interna, tal como a dos Corações Vulgares, mas maximizada por dez usuários. O chiste extremista, porém, é amenizado ao conferir os perfis pessoais dos integrantes, nos quais catalogam e escrevem textos realmente de acordo com suas opiniões, semelhantes às dos Vulgares. Entre eles, estão Bruno Pires, de 18 anos — citado no tweet de Arthur Tuoto —, Pedro Lovallo, de 21 anos, e João Pedro Faro, de 16 anos e o mais ativo dos três.

Imagem de Dunkirk (2017), de Christopher Nolan – um dos diretores mais criticados pelos vulgares

Uma das gozações mais prolíficas do grupo surgiu da atividade de Angelo Pilla, comparável à de um hater e representante do tal, nas palavras de Tuoto, “purismo arthouse de grife e que se sente ameaçado por outra valoração cultural”. Ao se deparar com as análises contrárias ao seu modo de enxergar o cinema, adorando M. Night Shyamalan (diretor de O Sexto Sentido, A Vila e Fragmentado) em vez de Christopher Nolan (responsável por Dunkirk e A Origem), Pilla começou a comentar em vários posts, comprando briga com os Vulgares. Em sua review de Dunkirk, resumiu suas opiniões sobre o grupo, na qual se manifestou contra “essa turminha que tenta em vão reativar um pseudo-espírito polêmico à la Cahiers-du-Cinema-anos-50 [que] veio apenas para fazer algum barulhinho chato no Letterboxd, e que de cinema mesmo, do significado da coisa, eles não entendem absolutamente nada”.

Na discussão que se desenrolou em 65 comentários de diversos usuários — e que já chegou a centenas em outras ocasiões —, os Pós-Vulgares buscaram denunciar a intolerância de Pilla e insistiram que ele deveria ser menos solitário, como na mensagem de Eduardo Bolzan, também dos Pós. “A diferença de andar em grupo é que tem sempre alguém para avisar que você tá falando merda. Faça amigos, Angelo. A vida é bem melhor assim”, escreveram. “Você preferia jogar bola ou Gameboy na hora do recreio?”, provocou Bruno Pires, sempre palhaço.

Além de cinéfilo, Pilla também dirigiu alguns curtas que, claro, não escaparam do humor ácido dos Pós-Vulgares. Discussão, de 2013, recebeu um texto satiricamente elogioso, que celebra o filme em que um casal discute “bolacha ou biscoito?” como uma obra-prima sobre a incomunicabilidade. “Acabei virando uma espécie de Cristo pra eles, tipo como se eles precisassem ter alguém pra nêmesis, ou algo parecido”, afirmou Pilla, que hoje já não tem mais o menor interesse em dar atenção ao grupo. “Postura continuamente infantil, de ataques pessoais e piadinhas, que pelo menos faz jus ao nome ‘Vulgares’”.

O bando de três

Em 2017, Bruno Pires, João Faro e Pedro Lovallo, todos cariocas, dias depois de aproveitar os destaques do Festival do Rio, foram passar um fim de semana em São Paulo durante a Mostra Internacional. Sem os filtros da internet, os rapazes puderam declarar suas verdadeiras intenções. Não que a zoeira não seja uma delas.

“Nós não estamos querendo ser uma Cahiers du Cinema”, disse Faro, o mais baixo, jovem e falante dos três, em referência à revista francesa sobre a sétima arte criada em 1951. “Estamos sim! E pode publicar isso”, cortou Pires, alto, de barba e cabelos muito volumosos e ruivos, que neste momento tentou, pela terceira vez, conseguir uma colherada do sorvete do amigo. De frente para os dois, Lovallo, mais pontual, ria. Mas será que essa posição do grupo fica clara? “Antes de tudo, somos espectadores”, retomou Faro. “E nós estamos registrando nossas impressões sobre os filmes de uma maneira despretensiosa. Eu entendo totalmente quem não entende a nossa postura mais de zoação. Afinal, muito do que fazemos é piada interna”. Para ele, o que há de mais sério no perfil dos Pós-Vulgares é sua bio, resumida na frase “Eu não quero fingir que sou mais legal ou inteligente do que realmente sou”, creditada a um dos ídolos dos Vulgares: Shyamalan.

Nos papos entre os adolescentes, discute-se cinema, visando ora o humor, ora um vocabulário cerebral. De uma maneira ou de outra, declaram suas visões sobre a sétima arte, com subterfúgios ou não. Surgem também constantes piadas com preferências a alguns críticos, respaldando um tom mítico com a vida e as opiniões de uma constelação deles como Filipe Furtado, Bruno Andrade, Ruy Gardnier, entre outros, sem esquecer da antológica briga entre Pablo Villaça e Maurício Saldanha — disponível no YouTube.

“Os meninos do Pós-Vulgares vieram para [São Paulo] ver filmes, e não me tietar”, contou Furtado. “Saí com eles um dia à noite e foi bem de boa, mas acho que se você falar com o João, por exemplo, ele estava mais preocupado em ver o [Jean-Luc] Godard e o [Abbas] Kiarostami. Agora eles são novos, então acho que às vezes eles criam uma mitologia em torno das pessoas que leem na internet. É até bom me conhecerem, pois fica claro que isso não tem nada a ver”.

Em um sábado, aguardando a primeira sessão do dia na Mostra de 2017, subindo a Rua Frei Caneca, caminhava o trio de cinéfilos, fantasiando um encontro entre eles e os seus “ídolos” em um karaokê japonês. Cantavam em uníssono. “Kono sora wo daite kagayaku / Shounen yo shinwa ni nare”, algo como “Agarre-se a este céu e brilhe / Garoto, torne-se uma lenda”, versos da antológica abertura do anime Neon Genesis Evangelion.

*Alguns dados do texto foram atualizados. O texto foi escrito originalmente em outubro de 2017.