Do lado do governo afastado, documentário O Processo acompanha o último impeachment de perto
Os últimos anos na vida política do Brasil foram de grande turbulência. Jogos se inverteram. Estamos em uma época de narrativas em conflito e como isso será registrado e sintetizado na História ainda é dúvida. O audiovisual do agora está cada vez mais identificável, lembrando o início dos anos 2000. Em matéria de documentário, se na transição para o século XXI havia um anseio muito forte pela crítica à representação dos marginalizados, tentou-se criticar essas imagens (muitas vindas da TV e das coberturas jornalísticas) e instaurar um olhar fresco que a grande mídia não conseguia captar. Eis que tivemos Ônibus 174, O Prisioneiro da Grade de Ferro, Notícias de uma guerra particular, e trabalhos mais particularmente políticos, como Entreatos e Peões.
Em um país em que o combate à corrupção é visto como o grande anseio popular, o palco das ações já é outro, a morada dos Poderes. Em 2018, duas obras se dedicaram a discutir essa realidade: O Mecanismo – série de José Padilha que gerou muita polêmica recentemente com suas “licenças poéticas” – e, agora, O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos sobre o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República.
Em termos simplórios, representativo dos cada vez mais distintos lados da moeda, cada um desses é uma obra para agradar um espectro político diferente. Infelizmente, nos próximos anos, ficarão resumidos a essas perspectivas. Mas vale por ora fazer uma pensata sobre como a narrativa é operada.
Contar a história do segundo processo de impeachment (ou seria golpe?) do Brasil de uma maneira sequencial, lógica, clara é aqui o grande objetivo da diretora. Partir das lutas exteriores, dos movimentos pró e anti-Dilma em Brasília para logo depois entrar definitivamente nos muros do Congresso Nacional e acompanhar de perto o desenrolar do processo. A ótima cadência da narrativa mostra um jogo de dúvidas que se arrastou por meses, em diversas discussões, de forma repetitiva e sempre caótica. Em O Processo, sua maior força divide espaço com seu grande ponto fraco.
Se por um lado, inevitavelmente uma perspectiva é narrada, com o grande recorte (mesmo com 2h10 de filme) perde-se algo essencial: o contexto. Porque mais do que acompanhar passo a passo o desenrolar dos fatos no calor do momento, é necessário olhar para o que veio antes. Tanto, que uma visão mais seca e contrária à posição de Maria Augusta Ramos pode chegar com quantas pedras quiser na mão e atacar uma certa docilidade nas imagens de políticos de um lado, e caricatura de outro. Afinal, a oposição nunca ganha voz no filme. Várias perguntas também são deixadas de lado para dar ênfase ao recorte da narrativa. Dependerá da disposição de cada um em ver ali uma denúncia ou uma construção crítica.
De fato, a autora da belíssima trilogia de documentários sobre o judiciário brasileiro, composta por Justiça (2004), Juízo (2008) e Morro dos Prazeres (2013), tem uma sobriedade muito particular nas suas imagens, que garante um acervo que oxigena um pouco a memória recente. A maioria desses registros, porém, são de reuniões da defesa de Dilma. E mesmo assim, em número pequeno. Abundam os debates calorosos, alternando entre a câmera da equipe e das TVs oficiais – cuja diferença ora é nenhuma, ora é brutal, no caso do olhar dos bastidores. E, como é de praxe em seus filmes, a voz em off nunca é presente. Os únicos elementos didáticos são feitos a partir da montagem, com os textos que pontuam as datas e o que está sendo tramitado.
Nesse sentido, um espectador que não está familiarizado com termos jurídicos e com o teatro político talvez não consiga acompanhar a verborragia. E, inevitavelmente, não deixam de surgir algumas agulhadas bem diretas, com as opções por algumas declarações bem acima do tom de Janaína Paschoal, uma das autoras do pedido de impeachment. E surgirão desde imagens involuntariamente cômicas, até o ridículo pelo exagero e pelo deslocamento de alguns de seus discursos.
Fica clara a diferença dos pontos que a defesa de Dilma abordou repetidamente, e que não foram devidamente rebatidos nos processo em detrimento de outras interpretações sobre os crimes de responsabilidade. Afinal, lei é interpretação. E mesmo sem a narrativa de apoiadores de Dilma, ou a de Maria Augusta Ramos, ainda há fatos que incutem dúvidas sobre o processo, como o fato da ex-presidente não ter perdido seus direitos políticos depois do afastamento.
Particularmente, no final das contas, o filme traz imagens “higiênicas” demais, nem sempre a montagem consegue esclarecer os acontecimentos e a comparação com O Processo de Kafka parece pertinente até a página dois. Enfim, endosse ou não o espectador os argumentos do filme, resta a necessidade do registro desse lado da história nos anais do cinema, mesmo que esse não esse filme esteja longe de combater a violência incontrolável da câmera da televisão e das imagens digitais. Afinal, ao comprar o ingresso, o espectador marcará hora para reencontrar um mesmo processo ainda fresco em sua cabeça.
*Esse texto foi originalmente publicado no site Bastidores.
O Processo (2018 – Brasil)
Direção: Maria Augusta Ramos
Gênero: Documentário
Duração: 137 min