“Olhar domesticado”: por que brasileiro nem sempre valoriza a própria cultura? - Revista Esquinas

“Olhar domesticado”: por que brasileiro nem sempre valoriza a própria cultura?

Por Evelyn Dantas : março 7, 2025

Fernanda Torres e Walter Salles conquistam marco histórico com indicações e prêmios internacionais como Globo de Ouro e Oscar. Foto: Divulgação

“Ainda Estou Aqui”, premiado no Oscar, levanta discussões sobre reconhecimento estrangeiro e orgulho nacional no cinema

Nos últimos meses, as discussões cinematográficas e culturais brasileiras foram acaloradas pelo sucesso de “Ainda Estou Aqui”, produção de Walter Salles que estrela Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello.

Com a conquista do tão “distante” reconhecimento internacional, a obra volta o sentimento de orgulho nacional e nos faz relembrar da qualidade do que vem de dentro do país. olhar domesticado 

Essa não é a primeira produção nacional a atingir validação internacional, o que nos faz pensar o porquê isso tem que acontecer para relembrarmos sobre nosso valor no mercado do cinema e orgulho de sermos brasileiros.

De 1945 para cá, produções musicais, filmes e documentários se destacam e saem da bolha interna do país atingindo camadas profundas que também refletem no sucesso interno de determinada obra.

Brasil para o mundo ainda estou aqui

Em 1945, a música “Rio de Janeiro”, de Ary Barroso, foi indicada na categoria “Melhor Canção Original”. A canção era parte da trilha sonora de uma comédia norte-americana chamada “Brazil”, mas acabou perdendo para “It Might As Well Be Spring”, de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, do filme State Fair. 

Quase duas décadas depois, em 1963, o filme “Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte, foi indicado na categoria de “Melhor Filme Estrangeiro”. Apesar de não ter ganhado, no ano de seu lançamento, 1962, teve reconhecimento internacional ganhando a categoria Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Mais de 20 anos depois, o Brasil aparece novamente nas indicações do Oscar. “O Quatrilho”, dirigido por Fábio Barreto, disputou na categoria “Melhor Filme Estrangeiro” e perdeu para a obra russa “O Sol Enganador” .

Em 1998, foi a vez do filme “O Que É Isso, Companheiro”, dirigido por Bruno Barreto. O elenco com Fernanda Torres e Pedro Cardoso, e a história intrigante quase trouxe o prêmio para solo brasileiro, mas o drama belga-holandês “Carácter” levou a estatueta novamente para a Europa.

“Central do Brasil”, 1999, marcou a história do cinema brasileiro ao ser indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e garantir a indicação de Fernanda Montenegro como Melhor Atriz. Sua atuação emocionante conquistou o público e a crítica, tornando-a a primeira brasileira a disputar essa categoria e reforçando seu lugar entre as grandes atrizes globais.

Em 2004, “Cidade de Deus”, adaptação dirigida por Fernando Meirelles, roteirizada por Bráulio Mantovani da ficção de mesmo nome escrita por Paulo Lins, foi indicado em 4 categorias diferentes. Melhor Direção, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Montagem, o que vibrou os brasileiros, mesmo não ganhando nenhuma das indicações.

O Brasil só foi aparecer de novo nas indicações do Oscar com a música “Rio in Rio”, da animação Rio, em 2012. No mesmo ano, entretanto, a animação dos Muppets acabou conquistando o prêmio.

Em 2014 com o documentário  “O Sal da Terra”, dirigido por  Juliano Salgado e Wim Wenders, o país retorna ao Oscar. Trata-se da biografia do renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.

O longa acompanha a trajetória de Sebastião, desde de seus primeiros trabalhos em Serra Pelada, passando pelos registros da África, pelo Nordeste e, enfim, chegando à sua obra-prima “Gênesis”.

Em 2018, com a animação “Touro Ferdinando”, de Carlos Saldanha para a indicação de Melhor Animação, perdendo para Viva – A Vida é Uma Festa, da Pixar.

Dois anos depois, em 2020, a indicação da vez foi o documentário  “Democracia em vertigem”. Dirigido pela cineasta Petra Costa, o longa acompanha o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, pontuando a ascensão e queda do Partido dos Trabalhadores e a intensificação da polarização política no Brasil.

A obra é uma análise do cenário político da época, contextualizando o espectador e explicando os acontecimentos de forma detalhada.

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As indicações passadas mostram que o Brasil tem um grande poder em produções audiovisuais e que o reconhecimento é uma realidade não só de hoje.

O questionamento que fica é por que, mesmo com reconhecimento estrangeiro, o cinema brasileiro ainda luta para se consolidar no imaginário nacional?

Esse mercado enfrenta barreiras que vão além do talento de seus cineastas e atores. Diferente da literatura, que conseguiu estabelecer um ciclo estável de produção, distribuição e até de consumo, o cinema nacional nunca consolidou um sistema tão robusto.

Essa fragilidade é refletida na dependência de incentivos governamentais e no impacto direto de crises econômicas.

Lisandro Nogueira, professor de Cinema na Faculdade Federal de Goiás, explica que parte do problema está nas origens do setor. Enquanto Hollywood se estruturava como uma indústria poderosa já no início do século XX, o cinema brasileiro recebeu pouco apoio e logo teve que competir com a televisão, altamente incentivada nos anos 1960.

Esse descompasso, somado à censura da ditadura militar, enfraqueceu a capacidade do cinema nacional de se expandir.

“O cinema surgiu com apoio estatal. Mas você vê que logo nos anos 60, todo o apoio foi para criar sistemas de televisão no Brasil. Como a TV Globo, como as outras que vieram depois, Bandeirantes e tal.”

Além disso, há uma presença devastadora do cinema americano. Desde os anos 1940, os grandes estúdios de Hollywood mantém um monopólio significativo sobre o mercado mundial, praticamente anulando iniciativas para o fortalecimento da produção local.

O resultado disso é o que Nogueira chama de “olhar domesticado”: a tendência do público de consumir quase exclusivamente narrativas norte-americanas, limitando seu repertório cultural.

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A baixa popularidade do cinema nacional entre os próprios brasileiros é uma questão que intriga especialistas. Países como Argentina, por exemplo, têm grande aceitação das produções locais, enquanto o Brasil ainda enfrenta resistência.

Existem várias teorias sobre esse fenômeno. Falta de roteiros que dialoguem diretamente com o público e o domínio do cinema estrangeiro nas salas de exibição e no streaming são algumas das explicações para essa não valorização.

Algumas produções exigem do público uma espécie de “alfabetização” que é constantemente prejudicada pelos motivos mais diversos. Desde a “domesticação do olhar” até a velocidade que a internet propõe.

Mesmo assim, há casos de sucesso que quebram essa tendência. “Ainda Estou Aqui” é um exemplo. O filme conseguiu emocionar os espectadores com uma história que equilibra temas políticos e uma forte carga emocional, conquistando mais de um milhão de espectadores.

 “É um filme que consegue criar empatia e dialogar com o público, algo raro, mas muito necessário” reflete o professor.

Oscar e o olhar global

Apesar das outras premiações ao redor do mundo, o Oscar ainda é o mais prestigiado e reconhecido entre eles. Para muitos, ele simboliza o reconhecimento máximo de uma produção cinematográfica. No entanto, Nogueira lembra que a cerimônia é, acima de tudo, uma grande vitrine de marketing e poder econômico.

Filmes que disputam o prêmio precisam de um forte lobby para garantir sua visibilidade, o que explica algumas decisões surpreendentes da Academia.

Ainda assim, a categoria de Melhor Filme Internacional se mantém como uma porta de entrada importante para obras de outros países.

Filmes como “Ainda Estou Aqui” mostram que, quando uma produção é capaz de se comunicar com diferentes culturas, pode alcançar um impacto global significativo.

Efeitos na prática

Demorou mais de 50 anos, mas a verdade, enfim, será reconhecida nos documentos oficiais. Nesta terça-feira (10), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que altera as certidões de óbito de 434 brasileiros mortos ou desaparecidos durante a Ditadura Militar (1964-1985).

Agora, a causa da morte não estará mais registrada como “desaparecimento” ou “causa desconhecida” e sim “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro.”

Pode parecer apenas um detalhe burocrático, mas, para as famílias que esperaram décadas por esse reconhecimento, significa muito mais.

Significa que o Estado finalmente admite o que tentou esconder. Significa que a dor e luta de tantas mães, esposas e filhos não foram em vão.

Em uma das cenas mais impactantes do filme, interpretada por Fernanda Torres, Eunice ergue a certidão de óbito do marido, como quem ergue um troféu depois de uma batalha longa e exaustiva.

“O não reconhecimento da morte de Rubens Paiva foi a forma de tortura mais violenta a que eles poderiam submeter nossa família”, diz ela.

Jornalista, escritor e doutor em comunicação social, Camilo Vannuchi, explica como a exposição mundial do filme traz um olhar de “complacência e solidariedade” àqueles que perderam seus parentes e familiares na época da Ditadura. Além de fomentar discussões como o movimento ‘sem anistia’.

“O filme oferece um respaldo internacional para o projeto de julgar e condenar os responsáveis pelo assassinato e ocultação de cadáver de Rubens Paiva e outros casos similares. Além disso, reforça a importância de não repetirmos o erro de anistiar pessoas que, 60 anos após 1964, ousaram se levantar contra a democracia e tentar um novo golpe de Estado no Brasil. Esse movimento de ‘sem anistia’ busca garantir que os golpistas de 2022, 2023 e 2024 sejam colocados no banco dos réus e julgados pelos crimes que cometeram.”

Editado por Bruna Blanco

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