A quebrada também é geek - Revista Esquinas

A quebrada também é geek

Por Malu Mões : março 27, 2019

Perifacon, feira de cultura pop realizada na periferia por jovens periféricos, mostra a potência de bairros, públicos e artistas ignorados pelas grandes convenções nerd de São Paulo

Uma fila gigantesca lotou a Rua Algard, no último domingo (24). Algumas das inúmeras pessoas que aguardavam sua vez para entrar na Fábrica de Cultura do Capão Redondo estavam fantasiadas, entregando a temática do evento – ou confundindo os moradores do Conjunto Habitacional Jardim São Bento. “Moça, que evento é esse?”, perguntavam. Era a Perifacon, primeiro evento de cultura pop, nerd e geek realizado na periferia.

Filha de sete jovens periféricos de São Paulo, surgiu da inquietação do porquê não há convenções como a Comic Con Experience (CCXP) em bairros que se distanciam do centro. “Por que esse universo é tão restrito? Por que é tão caro? Ser nerd no brasil é caro”, explica Luíze Tavares, uma das organizadoras do evento.

A CCXP ocorre na São Paulo Expo, próxima ao Jabaquara, zona sul da capital. A Perifacon também acontece ao sul, mas está a 26 quilômetros de distância da outra conferência. O caminho mais rápido de transporte público entre os dois locais dura uma 1h47 e custa 14 reais. Já o mais barato, 7,47 reais, dura 2h. Os valores do primeiro lote para a diária na CCXP 2019 variam entre 90 reais (meia entrada na quinta-feira, dia mais econômico para a visita) a 360 reais (preço da inteira durante o fim de semana). Além disso, a CCXP possui o pacote Full, que custa oito mil reais e dá acesso a experiências que os outros participantes não podem vivenciar. Um tanto restrito para 50% dos trabalhadores brasileiros que ganham menos de um salário mínimo, segundo dados do IBGE de 2016.

Os organizadores da Perifacon contestavam diversos paradigmas desse universo – desde os valores dos ingressos à representatividade dos personagens. Isso os levou a perceber que eles mesmos podiam criar sua feira nerd, e uma que fosse a cara da quebrada. A Comic Con das favelas surge assim. Primeiramente, a ideia era ser um evento simples, para poucos participantes e com gasto máximo de 500 reais. Mas a feira repercutiu na internet, chegando a mais de dois mil confirmados e 5.300 interessados no evento do Facebook.

Para dar conta das dimensões de público e não desapontar a expectativa dos fãs, foi necessário realizar um financiamento coletivo. Quase oito mil reais foram arrecadados. O evento foi construído de forma colaborativa, as marcas e palestrantes que participaram não cobraram e a equipe de apoio era formada por voluntários da própria comunidade ou amantes dos quadrinhos que acharam a ideia bacana. “A programação que a gente tem hoje foi graças à cada pessoa que acreditou na ideia e contribuiu”, conta Tavares.

Para a organizadora, a ideia da feira não é segregar os dois públicos, mas criar uma ponte entre a Perifacon e outras convenções, mostrando o potencial de público e de artistas que há em bairros marginalizados e invisíveis pelos grandes circuitos de evento. O diálogo e as trocas eram nítidos no encontro. Havia moradores do bairro que tiveram, durante a feira, seu primeiro contato com cultura nerd. Também estavam presentes assíduos frequentadores das convenções já existentes. Editoras famosas de quadrinhos e autores independentes de fanzines – publicação não profissional de entusiastas de certo tema – ocupavam o mesmo espaço. “É a primeira vez que estão trazendo para a periferia cosplays, artistas, jogos. Isso ajuda a melhorar a visão que as pessoas têm de fora da periferia”, afirma o visitante Cláudio Barreto.

“O público e as pautas são diferentes dos outros eventos. É outro lado do mundo dos quadrinhos”, comenta Marília Marz, ilustradora que participou da mesa de debate “Produção e representatividade negra nos quadrinhos”. Como é formada em arquitetura, a jovem constrói suas histórias a partir dos espaços ocupados pela comunidade negra. “A gente tem várias histórias aqui do bairro que são tão importantes e incríveis quanto as de super-herói. Por que a gente não conta estas histórias?”, questiona Marcelo D’Salete na mesa em que participou.

As outras rodas de conversa que rolaram no evento foram “Produção de podcast no Brasil e porque ninguém consegue parar de ouvir”, “Mulher no mundo nerd”, “Produção independente e editorial: qual rumo seguir” e “Arte e resistência”. Além de fomentar o que já existe, para os organizadores a convenção foi uma forma de possibilitar que mais ilustradores e quadrinistas surjam na periferia.

No quarto andar, a maior fila da feira – superando as da praça de alimentação – era a do Beco dos Artistas, onde produtores independentes podiam expor e vender suas artes. Adesivos por um real, broches por dois, cartões por cinco, fanzines por dez, ilustrações maiores por 15 ou 20. Os preços variam de artista para artista. Mas além de conseguir alguns trocados vendendo sua arte, participar da convenção lhes dá a oportunidade de divulgar seu trabalho para os diferentes públicos da convenção.

“Como a gente mora numa área muito restrita, zona sul, na periferia, sempre tínhamos que ir para o centro para ter essas vivências de criação de HQ, de design, de ilustração”, conta Camila Ribeiro, ilustradora do coletivo Criart. O grupo, por meio de financiamentos coletivos, oferece cursos de quadrinhos gratuitos na região de M’Boi Mirim. Além de vender produtos para arrecadar fundos para o coletivo, o Criart também utilizou o espaço do evento para divulgar seu curso e convidar jovens periféricos a se inscreverem.

Era quase impossível se locomover no segundo andar, onde estavam as grandes editoras de quadrinhos e literatura fantástica. Lá ocorria uma sessão de autógrafos com artistas de destaque no cenário atual de HQ. Load & Loud marcou presença, deixando jovens extasiados enquanto aguardavam para falar com a dupla. Os dois criaram o Rap nos Quadrinhos, projeto em que rappers nacionais – como Karol Conka e Ricon Sapiencia – são ilustrados como super-heróis dignos de comparação à Marvel e à DC Comics.

Uma editora chama atenção pela sua calma em meio àquele turbilhão. A FiloCzar é uma livraria e editora que, assim como o seu editor César da Costa, nasceu na periferia. Ele afirma que tem muita coisa acontecendo por ali e que procura dar espaço para esses trabalhos. O que começou como uma livraria virtual em 2011, hoje é uma escola e biblioteca com um espaço fixo no Parque Santo Antônio, onde Costa cresceu na zona sul.

“Tem mais cosplays do que a gente achou que teria”, comentam as irmãs Tais – vestida de Daenerys, a Mãe dos Dragões de Game of Thrones –, e Amanda, fantasiada de Caçadora da Liga da Justiça. Para a surpresa das garotas, elas encontraram vários amigos que haviam feito em outras exposições. Enquanto crianças, jovens e até adultos disputavam a atenção da dupla para conseguir uma foto, elas contaram que os cosplays na Perifacon chamaram mais atenção do que os de outras convenções. As duas moram em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. “Sempre tivemos que nos deslocar para o Centro, pegar metrô. Aqui tem pessoal que mora do outro lado da rua”, relatam.

O evento que movimentou o Conjunto Habitacional Jardim São Bento “é para todas as favelas daqui de São Paulo”, como explica a voluntária e amiga dos organizadores, Milena Nascimento. “São organizadores favelados criando um evento para a favela, mostrando que a gente tem potencial”.