Exposição com centenas de originais reúne as diferentes facetas dos desenhos de Millôr Fernandes
O fechamento da revista O Cruzeiro, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, se aproximava, e faltava uma reportagem de duas páginas. Corria pela redação que um certo faz-tudo levava jeito para o desenho. O então diretor da revista, Freddy Chateaubriand, sobrinho do magnata da mídia, decidiu então tirar o garoto da colagem de letras, que fazia até então, e permitir que fizesse o que quisesse naquele espaço vazio. A partir de então, Millôr Fernandes, o tal garoto, à época com 14 anos, deu os primeiros passos para se tornar o inconfundível “Millôr Fernandes”.
Apesar de sempre único, é desse e de outros “millôres” que trata a exposição “Millôr: obra gráfica”, agora no Instituto Moreira Salles Paulista, dois anos após o lançamento no IMS Rio. Centrada nos desenhos do humorista, também jornalista, dramaturgo e tradutor, a mostra com curadoria de Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires traça um perfil das diferentes abordagens e sínteses que sua obra abarca.
Os originais bem-preservados do autor de A Bíblia do Caos, divididos em cinco blocos principais, revelam a versatilidade, a resistência e os diferentes tipos de humor do artista. Se “Brasil” e “Condição Humana” trazem desenhos marcadas por certa atemporalidade no comentário das nossa mazelas, recorrendo à iconografia da história do País, “À mão livre” evidencia um artista de liberdade e coerência ímpares, dando asas menos a um riso irônico e mais a uma inspiração poética que se permite, também, melancólica.
Vide a “Guernica: um minuto antes”, em que Millôr recria a obra-prima de Pablo Picasso, mostrando a vida feliz dos personagens, em cores vivas, alegres — o que só reforça, em comparação, o horror da Guernica original, um minuto depois. É ainda em “À mão livre” que vemos um Millôr despretensioso, fazendo desenhos totalmente inspirados pelo traço simples do norte-americano Saul Steinberg, um dos maiores cartunistas de todos os tempos.
Sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo, Millôr marcou época com a sua página O Pif-Paf, publicada nas edições de O Cruzeiro, em séries de desenhos como a “Composissão infantiu” — em que seu traço livre ganhava ares pueris para fazer humor com grandes temas — ou ainda a “A verdadeira história do Paraíso” — pura zombaria com Deus e suas criaturas. Ocasionalmente, recebia colaborações de Péricles (autor do personagem Amigo da Onça) e também fazia os textos da página, permitindo o nascimento de sua verve frasista, muitas vezes fazendo paródias de sabedorias ilustres. “Em geral, quando a gente encontra um espírito aberto, entra e verifica que este é vazio”, citou certa vez, como sendo uma frase de Confúcio.
Em “Millôr por Millôr”, por fim, vemos uma enxurrada de piadas autorreferenciais, as mil e uma formas diferentes que desenhou o seu nome, além de várias obras que revelam uma intimidade pouco relacionada à figura do artista. Em dois desenhos separados, um grupo de jornalistas pede a opinião de Millôr sobre o FHC e Lula. “Posso fazer uma síntese?”, ele responde.
A exposição é gratuita, vai até 27 de janeiro de 2019 e não ficará presa à galeria no sexto andar do IMS Paulista. Vale a pena consultar a página do Instituto para ver os eventos, aulas e conteúdos produzidos sobre a obra do artista.