Desvendando as memórias e tradições culinárias em uma padaria portuguesa de São Paulo; conheça o mix cultural na gastronomia da metrópole
Pense naquela comida que você adora. Tente lembrar também do cheiro, da textura ao tocar nos lábios, do sabor que lhe agrada. A que lembranças esses elementos remetem? Alguma história específica? Uma pessoa em especial? Um momento da sua vida?
A intenção não é instigar a sua vontade por este prato, mas provar o quanto o nosso paladar se relaciona com a nossa memória. O pesquisador Henrique Trindade Abreu acredita que essa relação vai muito além. Ele trabalha no Museu da Imigração, em São Paulo, instituição que tem como objetivo preservar e contar histórias de pessoas de todo o mundo. Para Trindade, “a memória culinária faz parte de uma memória coletiva, que pode ser vista como uma resistência dos imigrantes ao desenraizamento cultural e geográfico”.
Comer um prato típico do seu país de origem carrega as experiências vividas nessa realidade anterior, além de ser uma estratégia de adaptação em terras estrangeiras. É assim para Teresa de Jesus Cosme, de 78 anos, que aprendeu a fazer arroz doce quando ainda morava na cidade de Bragança, ao norte de Portugal. Passadas seis décadas, é a única sobremesa que sabe fazer. Mas garante manter a legítima receita portuguesa, principalmente devido a um ingrediente em especial: a clara do ovo. Com a cozinha acalorada pelo cheiro de leite condensado e canela, ela se lembra dos momentos que viveu com a família brasileira e com a família que ficou do outro lado do Atlântico.
Açúcar e arroz. Dois ingredientes indispensáveis na receita de Dona Teresa que encontraram no solo brasileiro um ambiente propício para serem cultivados. Foram trazidos pelos portugueses, assim como as festas juninas, a religião católica e a própria língua. As influências lusitanas são muito presentes na sociedade brasileira, mesmo após a separação deles lá em setembro de 1822, e a explicação é bem simples: o Brasil é o sexto país onde mais vivem portugueses emigrados segundo o Relatório da Emigração, feito pelo Governo de Portugal, no ano de 2016.
- Influências da culinária portuguesa
- Influências da culinária portuguesa
Ao lado destes imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil, Maria do Rosário Caetano, de 68 anos, desembarcou do transatlântico Vera Cruz acompanhada do pai e do irmão mais novo em 1958. Trouxe às terras brasileiras o costume de usar a gastronomia para reunir a família ao redor da mesa. O bacalhau, que em Portugal é regado a azeite, passou a ser refogado com cebola, pimentão, alho, pimenta e tomate. Antes, o peixe reunia os pais e irmãos de Caetano ao redor da mesa. Hoje, reúne os filhos e os netos.
A família da senhora portuguesa comprova a teoria que o chef de cozinha Erio Fenocchi tem sobre a culinária portuguesa. Para ele, essa cultura valoriza o ato de se sentar à mesa e dividir o pão, compartilhando as refeições com outras pessoas. “É uma tradição que valoriza a comida, a cultura gastronômica e os produtos regionais”, complementa. Ele é o chef de produção da Padaria da Esquina, estabelecimento do Jardim Paulista, em São Paulo, e tem como missão produzir pães e doces de acordo com os processos portugueses artesanais e de fermentação.
- Erio Fenocchi e Raisa Ferreira, chef e sous chef da Padaria da Esquina, no Jardim Paulista, em São Paulo
- Os pastéis de nata são o grande clássico da confeitaria lusitana
- A Padaria da Esquina busca reproduzir pratos tradicionais da cozinha portuguesa, adaptando, quando necessário, à maneira do Brasil
- A Padaria da Esquina busca reproduzir pratos tradicionais da cozinha portuguesa, adaptando, quando necessário, à maneira do Brasil
- A Padaria da Esquina busca reproduzir pratos tradicionais da cozinha portuguesa, adaptando, quando necessário, à maneira do Brasil
- A Padaria da Esquina busca reproduzir pratos tradicionais da cozinha portuguesa, adaptando, quando necessário, à maneira do Brasil
- A Padaria da Esquina busca reproduzir pratos tradicionais da cozinha portuguesa, adaptando, quando necessário, à maneira do Brasil
Muitos fregueses da padaria são portugueses ou descendentes destes. Buscam pratos, pães ou doces específicos, naturais da “terrinha”. Mesmo não sabendo o nome da receita, pedem “aquele pão com carne que a avó fazia” ou “aquele doce com fios de ovos”. “Eles vêm na esperança que a gente tenha alguma comida que remeta às lembranças familiares deles”, diz Raisa Ferreira, sous chef da padaria. Geralmente, os pedidos são atendidos, mas sempre com adaptações. A regra da casa é manter a receita portuguesa, mas o clima, as matérias-primas e os ingredientes disponíveis nem sempre são os mesmos.
E na mistura de elementos português e brasileiro, no desejo de preservar a tradição mesmo que de longe, torna-se mais autêntica a identidade que os imigrantes de Portugal constroem em terras estrangeiras.