O lugar delas é na literatura - Revista Esquinas

O lugar delas é na literatura

Por Laura Navarro : dezembro 4, 2019

Foto: Acervo Pessoal

Literatura feminina: conheça as mulheres que usam a escrita para afirmar a própria identidade

“Acho que para cada escritora há uma razão diferente. No meu caso, é o desejo de dar um testemunho do meu tempo, da minha gente e, principalmente, de mim mesma. Eu existi, eu pensei, eu senti, e eu queria que você soubesse. No fundo, é esse o grito do escritor, o impulso de todo artista. É se fazer ver. Eu existo, olha para mim, escuta o que eu quero dizer, tenho uma coisa para te contar. Creio que é por isso que a gente escreve.”, revela uma das maiores autoras da literatura brasileira, Rachel de Queiroz.

A professora de inglês Natália Borges Polesso oferece fatias de sua vivência enquanto mulher lésbica ao grande público através de histórias que tratam a questão com naturalidade e humor. Polesso recebeu um prêmio Jabuti pelo seu livro de contos, Amora. Um trecho dele foi utilizado como texto de apoio em uma das questões do ENEM 2018, o que rendeu polêmica entre os setores mais conservadores da sociedade. Com pitadas de didatismo e autoafirmação, sua obra agora é complementada com o romance Controle, que discute homossexualidade e epilepsia a partir de referências que incluem até a banda New Order.

A mulher na literatura, principalmente com esse viés arrojado, sempre foi vista com maus olhos. Até o século XX, as poucas escritoras não podiam assinar suas obras, necessitando estar sob patente de seus maridos. Algumas autoras utilizavam pseudônimos masculinos para publicar sua literatura que, já na época, possuía uma visão crítica acerca da dominação masculina. Virginia Woolf foi ainda mais fundo, colocando no papel ideais que dialogam com a proposta do movimento LGBT, além de descrever de forma bastante incisiva a experiência da mulher com transtornos mentais.

Existem projetos com o objetivo de resgatar a poesia e literatura produzidas por mulheres. Esse é o caso do Senhoras Obscenas (nome inspirado no livro de Hilda Hilst) que, idealizado pela historiadora Adriana Caló e pela poeta Graziela Brum, divulga, em sua página do Facebook, poetas supostamente esquecidas, como Florbela Espanca, além de publicar vídeos em seu canal no YouTube. O projeto promove, ainda, saraus e antologias com os textos das participantes (uma delas, Damas entre Verdes, pode ser encontrada na Livraria Martins Fontes). “Nós somos subversivas”, conta, de prontidão, Brum.

A escrita poética sempre foi dominada pelos homens, apesar de as mulheres serem consideradas essencialmente sensíveis. Isso justifica a insegurança feminina frente à produção artística. Há iniciativas com o objetivo de superar essa barreira, como o Clube da Escrita para Mulheres, idealizado por Anna Clara de Vitto e Jarid Arraes. Criado em 2015, ele tem a intenção de “juntar a prática criativa com questionamentos políticos a respeito do mercado editorial” a partir, também, da realização de eventos e do auxílio às mulheres que pretendem publicar suas obras.

Ainda assim, grandes autoras brasileiras se destacam e precisam ter suas histórias contadas.

Natália Borges Polesso, autora de Amora e Controle

Para Polesso, autora do livro Controle (em it), a escrita é uma potência criativa e permite a autoafirmação
Acervo Pessoal

 Romancista e contista, ela diz que começou a escrever ainda muito cedo, embora na infância tivesse o hábito de contar histórias, inspirada pelas narrações da avó. Mais velha, passou a escrever poesias e a nutrir o interesse em juntar palavras e criar imagens. Nos anos 2000, decidiu tornar-se efetivamente escritora. Em 2019, ela esteve em São Paulo para realizar o lançamento de seu segundo livro, Controle, que conta sobre uma jovem paciente com epilepsia que se descobre homossexual. O lançamento foi realizado em um sábado, dia 29 de setembro, na pequena Livraria da Travessa, próxima à Estação Fradique Coutinho.

Apesar de ser percebida por muitos como porta-voz das mulheres lésbicas na literatura, Polesso conta que jamais viu a escrita como uma forma de afirmação. “Ela é uma potência criativa, um lugar onde posso criar mundos e gentes, onde posso abordar narrativas. Talvez essa ideia de escrever sobre o que faz sentido para mim, transpareça uma afirmação”, diz. A recepção de seu primeiro livro foi, de fato, um sucesso. Suas personagens e seu estilo, “simples, mas poético”, destacam-se em suas obras.

Marina Rodrigues e a TRANSversalidade da criação na literatura

Marina Rodrigues utilizava a literatura como terapia até se encontrar na escrita
Acervo Pessoal

Marina Rodrigues, 29 anos, portovelhense que vive em São Paulo, é tímida e forte. Ela conta que começou a escrever literatura em 2013, como uma espécie de terapia para externar seus sentimentos, medos, raivas e alegrias, a fim de lidar com o peso de seu processo de transição. Ao perceber o próprio talento, não parou mais e ingressou na Faculdade de Letras com a intenção de desenvolver melhor suas técnicas de escrita. Tendo essa bagagem emocional rondando a sua existência e a sua produção, ela afirma: “Nossos corpos estão sob constante análise pública, então a forma como escrevemos com eles e sobre eles é a nossa carta de intenções”. A escritora parte de temas existenciais até chegar a temáticas universais. Nesse momento, Marina é colaboradora num blog dentro do site ECOA, um projeto do UOL sobre ideias para um mundo melhor.

Anna Clara de Vitto e a escrita terapêutica

literatura

 

De Vitto é incisiva quando diz que utiliza a literatura como terapia. Apesar de ter sido “uma criança com imaginação fértil” e que escrevia muito, ao final da adolescência, na época de vestibular, ela passou a escrever com o propósito de espantar seus demônios. Era a forma que havia encontrado para combater a solidão avassaladora, chegando a considerar a escrita sua melhor amiga. Ela reconhece, nessa época, uma catastrófica instabilidade de humor e o início de seus problemas com ansiedade. Em decorrência do preconceito que ainda se tinha, em 2005, contra tratamento mental, sua única saída foi catártica: a arte. E ela a abraçou com tanto vigor que hoje, além de já ter se consagrado com o belíssimo livro Água Indócil, afirma que escrever é a razão pela qual vive.

Em 2016, já formada e casada, passou a frequentar grupos no Facebook de escrita terapêutica. Foi ali que conheceu a escritora Jarid Arraes e passou a frequentar o Clube da Escrita para Mulheres, propondo para si o desafio de lidar com a procrastinação, com a síndrome da impostora, com o perfeccionismo e com o hábito de querer agradar a todos. “Eu pego a minha experiência na literatura como ancoradouro, pois o que passei não é algo unicamente meu, é algo com o qual quero atingir outras mulheres. Por isso me filiei ao Clube, por querer saber o meu lugar aqui no mundo”, conta.

Graziela Brum, a amazona obscena

 

Brum é uma mulher branca, carismática, cuja fala se destaca pelo acolhedor sotaque gaúcho. Ela luta pela divulgação da literatura feminina, a partir do projeto literário Senhoras Obscenas, o qual, em três livros/antologias, organizou e publicou mais de 200 mulheres poetisas e prosadoras no Brasil, Uruguai e Espanha. Também luta pela preservação da Amazônia, abordada em seu romance, Jenipará, atual projeto, que, para ela, formaliza seu desafio com a escrita, a originalidade e a busca pela expressão própria no formato narrativo. “Escrever é um ato de resistência, a arte sempre é isso, sobretudo num mundo em que há superficialidade, em que tudo ocorre muito rápido e ao mesmo tempo. A arte de escrever é respirar, é meditar, é encontrar o outro e a si mesma para construir uma abordagem própria com o mundo e com os demais”, diz.

Seu contato com a criação literária foi um processo natural de entendimento de quem ela é. Quando criança, ela copiava livros, mas depois sentiu a necessidade de produzir seus próprios textos. Não imaginava que um dia se tornaria escritora e que passaria três anos produzindo um livro. Mudou-se para São Paulo em 2011, quando ingressou na primeira turma do Curso Livre de Preparação do Escritor, na Casa das Rosas/Centro de Apoio ao Escritor- CAE.

Brum venceu o concurso ProAc da Secretária Estadual de São Paulo (2014), na categoria romance com o livro Fumaça, que trata do transtorno de personalidade borderline no ambiente prisional feminino. Ela escreve todos os dias e acredita que o incentivo à cultura é a melhor forma para a transformação social.

Jarid Arraes, a cordelista em prosa

Nascida em Juazeiro do Norte, no interior do Ceará, Arraes tornou-se nacionalmente conhecida por sua literatura, que permeia principalmente questões que afetam ou dizem respeito a muitas pessoas, afastando-se um pouco de seu próprio ego. Ela vem de uma família na qual a escrita corre nas veias – seu pai e avô são escritores – e produz desde criança, apesar de só ter começado a publicar com 21 anos. Arraes sempre procura dar continuidade à tradição do cordel de seu berço, embora mergulhe em temáticas que normalmente não via nos cordéis.

A autora alega que os desafios da escrita dizem respeito, principalmente, ao mercado editorial, pois “é muito fechado e você tem que trabalhar muito para se divulgar”. Por outro lado, a resistência na definição da escrita se faz justamente pelo fato de predizer liberdade para produzir, já que se trata de uma forma de expressão autônoma.

Atualmente, ao lado de Anna Clara de Vitto, ela toca o grupo Clube da Escrita para Mulheres, que se fez uma iniciativa tão bem-sucedida que teve uma barraca na Virada do Livro – Festival da Mário de Andrade (nos dias 4,5 e 6 de outubro de 2019).

A literatura tem se tornado um ambiente mais democrático, especialmente em meio a essas divulgações. Raça, classe, gênero e orientação sexual são questões que permeiam, de uma forma ou de outra, a maneira como essas mulheres escrevem. Em meio a diferenças, todas têm como objetivo formar um mundo melhor, mais justo e com mais mulheres publicadas e divulgadas.