Fala polêmica do cantor Jão levanta a questão: há restrição de gênero no que diz respeito à cultura de fãs?
A Cultura de Fãs é um dos grandes fenômenos da atualidade. As chamadas fanbases dos mais variados tipos crescem cada dia mais e, com elas, as controvérsias ao redor das práticas e expressões referentes aos papéis de gênero, que são estabelecidos, em sua maioria, através de vieses conservadores, como contextualizado na fala do cantor Jão, que, recentemente, questionou o motivo pelo qual suas fãs são vistas como “fúteis”, mas, por outro lado, os fanáticos por futebol são vistos como algo positivo, apontando a hipocrisia nesse discurso.
Segundo a Doutoranda em Ciência da Comunicação (Unicamp) Beatriz Blanco, a Cultura de Fãs é uma prática de décadas, mas que tem sido muito mais debatida atualmente, e representa a ideia de relação com produtos culturais diversos, de forma a ir além de apenas o consumo daquele conteúdo, se envolvendo ativamente a produção de conhecimento de uma comunidade sobre determinado objeto, ou até mesmo por meio do chamado “trabalho de fã”: produção de fanfics, projetos voltados a comunidade de fãs, criação de fã clubes em redes sociais e tudo que prevê o envolvimento com o produto, das mais variadas formas.
A relação entre práticas de fã e papéis de gênero
Quando perguntada sobre a ligação entre o papéis de fã e gênero, Blanco diz: “Não gosto de dizer de uma forma essencialista de gênero, que fãs mulheres e fãs homens são diferentes. Mas eu acho que por questões do papel social tem um pouco de diferença em como essa relação de fã se manifesta. Elas são mais incentivadas a ter esse tipo de relacionamento parassocial, romântico, por assim dizer, porque a indústria cultural trabalha dessa forma.”
Essa distinção de percepção clarifica a não neutralidade da cultura de fãs, além de mostrar as formas como ela é atravessada por normas sociais que envolvem a hierarquia de gênero, ainda que o fanatismo por futebol e por símbolos da cultura pop não estejam distantes em essência, como explicitado pelo historiador João Assis. “Basicamente, por mais que sejam palavras diferentes, elas não estão distantes em significado, de torcedor para fã, e acredito que a diferença majoritária é muito mais na questão de gênero do que relativa a futebol. Porque, mesmo no futebol, existe também essa questão de repreensão a mulheres. Se a gente olhar a cultura de torcida, é uma cultura muito machista.”
Descredibilizar mulheres enquanto exercendo as práticas de fãs é parte de um processo mais amplo de deslegitimação das expressões femininas, seja na cultura pop, que é comumente vista como superficial, ou seja nos demais espaços, como o esportivo. Tal comportamento historicamente se repete em diversas áreas, como explica ainda João Assis, ao apontar que, desde a Idade Média, o acesso à cultura era restrito para as mulheres, que só teriam acesso através de um homem, enquanto acompanhante do mesmo, limitando as questões de gosto. A mulher é permitida a gostar de determinado produto cultural, mas não expressar sua admiração por tal, nem mesmo apontar criticidade ou aprovação em relação ao produto, diferente do que é proposto ao homem. Nesse sentido, a vivência do fanatismo deixa de ser apenas uma questão de gosto ou entretenimento para se tornar também um terreno de disputa simbólica sobre quem tem direito de experienciar os sentimentos vindos dessa vivência.
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A participação feminina nas comunidades
Os estigmas de gênero impostos sobre as atividades de fã acarretam numa determinada limitação do público feminino, mesmo quando essas atividades permitem ir além do nicho da comunidade. Ao ser questionada sobre sua visão sobre os fandoms hoje em dia, e suas formas de manifestação, a comunicadora Beatriz Blanco diz que os nichos evoluíram muito em suas ações, ao mesmo tempo que também se restringem, muitas vezes, a apenas o que é oferecido pelos ambientes digitais. “Hoje em dia você tem muitas opções, mas ao mesmo tempo eu acho que essas práticas se diluíram um pouco. Muita gente vai pra CCXP, por exemplo, tira foto em todas as ativações de marca, não fala pra ninguém e vai embora. E posta nas redes sociais, e aí as interações ficam muito limitadas nas redes sociais”.
A expansão do consumo como expressão da experiência de fã pode trazer fatores comuns há anos, como o colecionismo, mas que quando voltados para o entretenimento feminino, são mal vistos, Blanco completa. “Historicamente o consumo feminino é colocado nesse lugar do fútil. Um homem, por exemplo, que gosta de montar aeromodelo: ninguém vai falar que ele tá comprando “brinquedinho”, as pessoas vão dizer ‘ah, ele tá fazendo um trabalho ali, exercendo uma habilidade engenharia, ele está exercitando uma habilidade criativa, espacial, matemática’”.
Yasmin Yaumi, criadora e administradora do projeto ArmyBaixada, (fãs do grupo de K-pop BTS da Baixada santista), não apenas concorda com a existência de um limite imposto ao fanatismo, mas também afirma que já sofreu muitas represálias por seu estilo de consumo midiático. “Meu quarto, ele é todo de pôster, e minha familia, toda vez que entra no meu quarto é pra falar alguma coisa do tipo: isso é muito fútil, que isso não dá futuro, que isso é desnecessário”.
Apesar das críticas, os fãs clubes sempre mantiveram laços sólidos de seus gostos, nunca abaixando a cabeça. Tendo mais de 10 anos de existência, os grupos de fãs de K-pop, e em especial o ArmyBaixada, ressignificaram o “ser fã“ para além do fanatismo, criando um senso comunitário. A inclusão de gêneros e faixa etária são muito comuns nesses grupos, pois, em uma lógica de exclusão, os excluídos incluem uns aos outros. “Tenho uma amiga que é mãe, e ela participa dos eventos com a gente. Ai ficam tipo, ‘nossa, ela é casada, tem filhos e ela sai assim com jovens?’ E eu fico pensando o porque ela não poderia fazer isso?”, conta Yasmin. Além de integrantes que vivem a maternidade, há também um número muito grande de senhoras que participam do fandom ArmyBaixada, e outras que vão sozinhas para shows lotados de grupos de K-pop. Tal senso de pertencimento é, de fato, um dos fatores que mais move a cultura de fãs, assim como afirma o historiador João Assis: “Você se sentir pertencente àquilo, você ter um grande ídolo, um grande jogador que você se identifica, que gerou aquelas alegrias, então pega na sensibilidade do torcedor e da torcedora, pega num sentimento que não é trabalhado, é um sentimento bruto naquele momento”
A Cultura de fãs como parte do cotidiano popular
De forma direta ou indireta, todos exercemos o papel de fã: nossas afinidades com determinados gostos e preferências que moldam nossa personalidade podem também se encaixar como exercício da prática de fã. Nesse caso, o “ser fã” vai além da admiração, performando uma ferramenta de expressão social, comunicando aos outros quem somos por meio de determinados produtos culturais.
O consumo acontece não só por entretenimento, mas também como a reafirmação pessoal em um coletivo, encontro de ideias e reforços de identidades, e dessa forma, “o “ser fã” é aliado a pertencer a algo. Isso está diretamente ligado a como você enxerga a sua realidade, sabe? Você pertencer a alguma coisa está diretamente ligado a sua atividade como ser humano de enxergar algo e ver o que você é dentro do outro. Então se não somos máquinas, se não somos algo neutro ou sem vida, é justamente pelo fato da gente conseguir pertencer”, completa João Assis.