"Não é só o que é falado, mas como é falado": jornalistas e cineastas refletem sobre a produção de documentários - Revista Esquinas

“Não é só o que é falado, mas como é falado”: jornalistas e cineastas refletem sobre a produção de documentários

Por Lucas Cavallini e Vitória Prates : setembro 24, 2021

Profissionais do audiovisual dividem os desafios e as alegrias de fazer um documentário e analisam o cenário no Brasil

“Os documentários são uma nova forma de se contar uma história. Uma forma menos atada no puramente factual, mas com uma âncora que sempre o mantém ali”, diz Bruno Mazzoco, 38, diretor de conteúdos audiovisuais. De abrigos de adoção até vida de galinhas, o campo documental brasileiro mostra que tudo pode ser pauta.

Mas afinal, o que difere o documentário de outras peças audiovisuais? Para Bruno, a âncora é feita com o material mais sólido possível: a própria realidade. Pessoas encenando elas mesmas, fatos, lugares verossímeis. Depois disso, fica a critério do documentarista fazer ou não peças totalmente atadas à não-ficção.

Documentários: diversas possibilidades

Felipe Tomazelli, 38, diretor e produtor, acredita que a abertura criativa do documentário vem de um distanciamento do jornalismo. “O documentário é bem menos amarrado do que o jornalismo. Um documentário pode ser jornalístico como também pode pegar uma ponta factual e extrapolar totalmente a partir daquele momento, até porque os dois não têm a mesma função social”, explica.

Bruno Ascenso, 23, escolheu o formato de documentário para seu trabalho de conclusão de curso em Jornalismo, na Faculdade Cásper Líbero, em 2020. Para ele, a melhor parte de se fazer um documentário vem depois do momento que você passa a primeira barreira conceitual e enxerga as possibilidades que existem ali. “Eu acho que você se encanta mais quando vê como é possível experimentar’’, explica ele.

Feito com Mauricio Abbade, seu documentário “Qualquer coisa de Intermédio” é, à primeira vista, sobre galinhas. Bruno se apropriou do formato para mostrar que “qualquer coisa pode ser qualquer coisa”. Ele desenvolve: “É um documentário sobre a relação do eu com o outro, e a gente usa a galinha, o documentário e nós mesmos, as três coisas são o intermédio entre si”. Bruno optou pelo documentário por ser um meio em que se sentiu mais apto a criar. “Existe o certo, mas você não precisa necessariamente fazer o certo”.

Já Beatriz Duarte, 26, escolheu o formato documentário porque queria dar voz à história dos seus entrevistados e ao tema escolhido. O documentário “Hoje eu vou embora” está disponível no Amazon Prime Video, Sky Play, Vivo Play e Net Now e é o projeto de conclusão de curso de Jornalismo de Beatriz, também na Faculdade Cásper Líbero. O projeto é sobre adolescentes que atingem a maioridade em abrigos de adoção. “Ninguém melhor do que as próprias pessoas para falarem’’, afirma.

“Uma coisa muito boa no documentário é que não é só o que é falado, mas como é falado. Você vê que a pessoa não tá olhando pra câmera, ela tá olhando pra baixo, ela tá retraída, com braço cruzado. Essas são coisas que talvez a gente não conseguiria passar em um livro-reportagem. O documentário é incrível, em uma cena, você consegue mostrar tudo’’, opina Beatriz. Para a documentarista, mesmo que tenha algumas partes montadas, o documentário é a realidade.

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Referências em documentários

Tanto Bruno quanto Beatriz garantem que referência foi essencial na produção. “Referência é 70% do trabalho. 25% é ir atrás de ideias e 5% é o acaso, que é a graça do documentário e de qualquer arte”, diz Bruno. As inspirações de Beatriz vieram de todo lugar. “Tem uma frase que o meu pai fala muito pra mim: ‘Se você quer ser um bom escritor, você tem que ser um bom leitor’. Eu acho que isso também vale para o documentário. Se você quer fazer um bom documentário, você tem que consumir, tem que ver de tudo do audiovisual”, divide.

Bruno e Beatriz não têm dúvidas de que fariam um documentário outra vez. “Sim. Com certeza”. Ainda que, para Bruno, o processo tenha sido um “mini pesadelo”, ele diz que “é um grande desafio, não dá pra ser um hobby. Acho que exatamente pelo documentário misturar arte com factual você precisa ter um compromisso com aquilo que você está gravando. Não pode ser arte pela arte, tem de ter um porquê”. Para dar continuidade ao seu projeto de TCC, Beatriz diz que gostaria de fazer “uma continuação sobre o que aconteceu com esses jovens”.

Incêndio na Cinemateca e o audiovisual brasileiro

Mesmo com diferentes temáticas, as dificuldades de se produzir um documentário no Brasil, país que já mostrou para o mundo clássicos do cinema como “Cidade de Deus” e o “Auto da Compadecida”, persistem. Desde o começo do governo de Jair Bolsonaro, atual Presidente da República, o audiovisual e o campo das artes como um todo vêm sofrendo um desmonte.

No que diz respeito ao cinema, pode se notar o descaso com a Cinemateca Brasileira, agravado pelo momento em que o ex-ministro Abraham Weintraub rompeu o contrato que garantia o controle administrativo da cinemateca à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) até 2021. Além da quebra, sabe-se que a União ainda deve 14 milhões de reais à instituição que mantinha o espaço, renda que serviria para custos de manutenção e pagamento de funcionários. Os funcionários também foram totalmente desligados da Cinemateca após o rompimento do contrato.

Hoje, a Cinemateca Brasileira ainda segue sem administração. Depois de avisos de alguns funcionários que ainda trabalhavam no equipamento cultural sobre o sucateamento da instituição, o espaço sofreu outro incêndio no dia 30/7, que consumiu um anexo localizado na Vila Leopoldina. “É uma tragédia anunciada, um total descaso com a memória cinematográfica do País. Esses filmes são documentos de sua época, têm propósito, é por eles que o nosso audiovisual se inspira e se reinventa. Tudo isso é muito difícil de engolir”, desabafa Bruno Mazzoco.

Para Felipe Tomazelli, a postura do meio audiovisual, no entanto, deve ser outra: “Eu acho que já passamos da fase de ficarmos tristes, temos que reagir. A tristeza não pode nos imobilizar, precisamos nos organizar e fazer com que essa pauta audiovisual extrapole sua bolha.”

Além da baixa importância dada à memória cinematográfica, Bruno ressalta o mercado audiovisual, que fora esquecido pelo financiamento estatal:

“Idealmente fomentado pelo Estado, o cinema no mundo todo – fora Hollywood – depende de leis de incentivo à cultura e financiamento institucional. Aí fica difícil produzir algo no Brasil, que sofre um desmonte cultural contínuo, visto pelo mísero apoio estatal. Isso levou à elitização do próprio círculo cinematográfico brasileiro, em que muitos querem fazer algo, poucos conseguem, e dá pra contar no dedo os que alcançaram repercussão nacional ou internacional.”

Editado por Enzo Volpe

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