O sufoco da arte - Revista Esquinas

O sufoco da arte

Por Beatriz Calais e Maria Laura Saraiva : abril 10, 2019

Pouco conhecida, a síndrome de Stendhal afeta aqueles que enxergam com emoção exagerada a beleza das obras

“Ao chegar em Florença, meu coração batia com força; sentia-me sem condição de raciocinar e entregava-me à minha loucura como junto de uma mulher a quem se ama. Tinha chegado ao ponto da emoção onde se encontravam as sensações celestes proporcionadas pelas belas-artes. A vida esgotara-se em mim, eu andava com medo de cair”. Relatos semelhantes a esse não são atípicos por quem visita grandes museus. O trecho do diário Nápoles e Florença: Uma Viagem de Milão a Reggio, do escritor francês Stendhal, trata da síndrome que levaria seu nome anos mais tarde. A doença atinge pessoas hipersensíveis à beleza da arte e leva o nome do autor em referência a sua experiência relatada.

Descrita em 1989 pela psiquiatra Grazielle Margherini, do Hospital de Santa Maria Nuova, a síndrome foi catalogada somente após a análise de 106 pacientes com sintomas muito diversos, como entorpecimento, desorientação, disfunção sexual e problemas cardíacos. Havia dois fatores comuns: a visita a Florença e a sensibilidade artística.

Igreja de Santa Maria Del Fiori, obra-prima de Brunelleschi admirada por Stendhal

Igreja de Santa Maria Del Fiori, obra-prima de Brunelleschi admirada por Stendhal
Rodrigo Solon / Creative Commons

O gatilho da beleza pode ser explicado principalmente por um estímulo no lóbulo temporal, região do cérebro que controla a memória,   segundo o neurologista Edson Amâncio, presidente do Congresso Paulista de Neurociências. A pessoa acometida pela síndrome, ao se deparar com obras de arte, faz uma conexão com a sua própria vivência e acaba por se emocionar exageradamente. “É uma pessoa mais sensibilizada, que se encontra numa circunstância especial”, relata o médico. Os estímulos cerebrais dependem do inconsciente individual, ou seja, a composição emocional não é apenas de nascença, mas também cultural. “Está ligado à formação do caráter”, reforça a psiquiatra Renata Vasconcellos, médica pelo Hospital Universitário de Brasília. Isso explica o fato de que muitos dos casos registrados em Florença eram de pessoas ligadas às artes de alguma forma.

O Nascimento de Vênus, tela de Botticelli que culminou na última crise relatada na Itália, 2018

Os sintomas físicos são causados pela alta descarga de adrenalina, o que pode agravar os quadros clínicos em pessoas com problemas de saúde preexistentes. Foi o que ocorreu em dezembro de 2018, quando um turista italiano de 70 anos sofreu uma parada cardíaca aos pés de O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. O admirador tinha problemas coronários consideráveis, o que agravou seu quadro de acordo com a emoção a que foi acometido. O caso aconteceu na Galleria Degli Uffizi, o museu mais visitado da Itália, e o homem foi reanimado pela equipe socorrista do local.

O Cristo Morto, obra de Hans Holbein, imagem que despertou a síndrome em Dostoiévski, descrita em “O idiota”: “…quando se contempla este quadro, vemos a natureza representada sob a forma de um monstro enorme, implacável e mudo…”. O quadro também afetou o neurologista Edson Amâncio, entusiasta do escritor russo.

Porém, ao contrário do italiano da Galleria, quando o indivíduo está em perfeita saúde, a síndrome pode até compor um paradoxo: o prazer em estar diante de algo tão belo que cause esse mal-estar. Adriana Brito, de 42 anos, sabe bem o que é isso. A cearense e coordenadora de desenvolvimento da Fundação Bradesco relata ter diversas crises pela forte emoção ao contemplar esculturas, quadros ou mesmo filmes. Apesar das sensações de desequilíbrio e sufocamento, revela um prazer. “Pura fruição. Sinto que, ao vê-las, há uma ressignificação da minha vida”, comenta.

Brito só teve contato com o nome de Stendhal depois de muitas experiências, no Vaticano, de frente para a estátua da Pietá de Michelangelo. “É uma obra que desperta emoção, você sente a dor da mãe e a incapacidade de agir diante do filho morto que segura em seus braços, é uma emoção que chega a doer forte”, explica. Sentiu-se sufocada e saiu andando em desequilíbrio, que foi notado pelas pessoas a sua volta. Pela fala de um psiquiatra que também visitava o museu, foi informada que seus sintomas se encaixavam com a síndrome.

Pietá, escultura de Michelangelo referida por Adriana Brito
Galeria Uffizi

No Brasil, poucos sabem da sua existência. Muitos que ouvem falar desacreditam e a julgam como mito. Edson Amâncio revela dois argumentos para esse “achismo”: o pequeno número de ocorrências e a falsa impressão de que é uma doença causadora de danos exagerados, como em casos de epiléticos e cardíacos. “Não é uma doença clássica, é um sintoma momentâneo”, ressalta. E como tal, não há tratamento, mas sim recomendações. Descansar após ser acometido por uma dessas crises e não ficar exposto a muitas artes ao mesmo tempo são algumas delas. A médica Renata Vasconcellos indica a psicoterapia. “O objetivo é fazer com que o indivíduo contate com segurança suas emoções adormecidas para que essas não adquiram uma força destrutiva autônoma quando despertadas”, explica a psiquiatra.

Reações particulares perante estímulos visuais não são uma exclusividade dos belos quadros e monumentos. De forma parecida, existem as síndromes de Paris e Jerusalém. Na cidade francesa, o mal é desencadeado pela decepção que os turistas sentem ao constatar que o local não é o que esperavam. Já na cidade santa, o despertar de um fanatismo religioso leva os visitantes a acreditarem que são uma espécie de messias.

Seria a arte capaz de tudo isso? Muitos questionam. Mas como nas síndromes semelhantes, as obras não são a única questão envolvida. A sinfonia criada quando o homem atribui significado ao que vê tem influências no mal-estar ocasionado. A síndrome de Stendhal ultrapassa o limiar biológico. “O cérebro é uma orquestra”, afirma Amâncio. Stendhal já mostrava toda a complexidade e peculiaridade da cabeça humana ao admirar a Florença do início do século XVIII.