Cantores e bandas da periferia chamam atenção entre poesia e protesto no Grajaú
O sol começa a se pôr na região extremo sul de São Paulo. No céu, o tom alaranjado típico do crepúsculo. No chão, o cinza asfalto e o colorido grafite do Centro Cultural Grajaú, que recebe as atrações do primeiro dia da 14ª Virada Cultural. Nativo do Grajaú, Dan Sílva inaugura o palco tocando seu som terno, encanto puro.
A roupa estampada em preto e branco é comum em todos os integrantes do Vitrolla 70, que segue Sílva. Os que assistem entretidos, antes sentados nas arquibancadas de concreto, agora se aconchegam em frente ao palco para ouvir e sentir a música pela voz afetuosa de Matheus Machado. O nome do grupo já adianta a proposta: fazer música nova no estilo dos anos 1970, numa mistura de samba-rock e soul.
A sonoridade sentencia todas as cinturas e pés a se mexerem. Esquerda, direita, frente, gira. Os holofotes do palco substituem as luzes das baladas disco, e o clima boogie não para. Entram BispoSoul, AnderSoul e Will-Clã, artistas da trinca Madmen’s Clan, que se formou no bairro do Grajaú. A noite segue repleta de representatividades. “Vem curtir um black soul”, convida o hit homônimo do grupo, cuja melodia nunca vem só, mas sempre acompanhada de performance. A impressão é de que a real beleza da noite é ver a plateia dançar em sincronia.
O público, que já não era escasso, começa a se multiplicar quando é anunciada a chegada do Samprazer, banda paulista de samba e pagode formada na década de 1990 que faz os fãs se sentirem nas noites de boemia da capital. Os frequentadores da região em diferentes oportunidades lotam o point chamado “Pagode da 27” e tantas outras rodas de samba similares. O clima que predomina é justamente esse: a sensação íntima de uma roda de samba. A garoa fina não assusta os espectadores, que seguem cantando alto todas as músicas do grupo.
“Você olha e vê gente que gosta de todos os estilos”, comenta do palco Nassor Alvim, cavaquinista do quinteto, e com razão. Ana Caroline, moradora do Grajaú, diz ter ido só para ver o Samprazer, mas ficou até o último show. A maioria dos que lá estavam fez o mesmo: acompanharam todos os shows da noite, percebendo as diferentes personalidades que por ali passavam.
A seguir, um sonoro “Vocês tão preparados pro Oitavo Anjo?” surge do palco. A apresentadora e DJ que anima o público nos intervalos pergunta, e o coro da multidão que grita em polvorosa traduz a resposta afirmativa. Uma luz vermelha ilumina a névoa artística. Dexter, o Oitavo Anjo, cumprimenta os presentes e começa a cantar seu maior hit, responsável por lhe dar a alcunha pela qual é conhecido. De estilo inconfundível, a música conta as situações hostis vividas pelo rapper, que oferece um conselho a quem interessar: cuidar de si e crer na recuperação.
As 14 caixas de som dispostas em linha fazem o chão tremer. Notas graves invadem todo o ambiente, criando uma nova atmosfera, mais densa e pesada. Ao cantar os versos de “O que é, o que é?” de Gonzaguinha, O Oitavo Anjo escancara a visão que orgulhosamente defende de que a vida é curta, mas de singular importância, e que é preciso ter perseverança para lidar com as violações que sofrem os que estão à margem. As grades não impediram que Dexter pulasse na multidão e terminasse o show. Entre “Vida Loka Parte II”, homenagem ao Racionais MCs, e pedidos de paz, o rapper se despediu dos fãs.
A música, além de arte, também é manifesto. A conexão entre artista e espectador se fez nítida desde a abertura do espetáculo, seja pela poesia, nostalgia ou pela resistência da sonoridade periférica. A Virada Cultural, que tinha “Todas As Vozes” como lema nessa edição, cumpre a missão com o mérito de quem não podia ter sido mais fiel.