Cárcere de domésticas: para especialistas, cultura do medo dificulta denúncia e perpetua crime - Revista Esquinas

Cárcere de domésticas: para especialistas, cultura do medo dificulta denúncia e perpetua crime

Por Camilla Guerreiro : setembro 15, 2021

Mesmo com a PEC das Domésticas, trabalhadoras do lar ainda enfrentam tentativas de submissão e violência física e psicológica.

Mesmo com a PEC das Domésticas, trabalhadoras do lar ainda enfrentam tentativas de submissão e violência física e psicológica

“Não é uma questão financeira, é cultural mesmo”, afirma Mário Avelino, fundador e presidente da ONG Doméstica Legal, sobre a situação de cárcere privado em que muitas trabalhadoras domésticas são colocadas. Segundo o Artigo 148 do Código Penal, a prática é um crime que pode levar de um a três anos de prisão. Em casos de grave sofrimento físico ou moral da vítima, a pena pode chegar a oito anos.

Ainda assim, a reclusão forçada continua acontecendo com frequência. Em 25 de agosto deste ano, a babá Raiana Ribeiro da Silva, de 25 anos, caiu do terceiro andar de um prédio em Salvador. Ela tentava fugir de sua patroa, Melina Esteves França, que a havia trancado no banheiro do apartamento. Para escapar, Raiana tentou passar de uma janela para outra, mas acabou caindo. Ela foi atendida por socorristas e levada ao hospital.

De acordo com a jovem, a patroa a agrediu fisicamente diversas vezes, após um pedido de demissão de Raiana, que trabalhava na casa há apenas oito dias. Esse foi um dos episódios envolvendo domésticas em cárcere privado que teve grande repercussão pela mídia. Raiana permaneceu presa por poucos dias, mas, na maioria dos casos, trabalhadoras domésticas nessa condição chegam a ficar meses ou anos.

Embora muitos patrões tenham conhecimento de que a prática é crime, alguns continuam fazendo, como explica Avelino: “O que falta é esclarecimento aos empregadores. Mas, infelizmente, mesmo esclarecendo, tem uma minoria que extrapola e gera esse tipo de abuso”.

Domésticas na pandemia

De acordo com o especialista, a situação da categoria tornou-se ainda pior durante a pandemia. “Ela gerou para o empregador o medo de que elas levassem a covid-19. Então, como eles precisam da doméstica, um jeito de evitarem isso, de forma totalmente errada, é forçar o cárcere privado”, afirma.

A situação vai além: segundo a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), as denúncias de falta de pagamentos e de abusos com empregadas domésticas aumentaram em 60% durante a pandemia.

A informalidade

Até maio de 2015, as trabalhadoras domésticas não tinham tantos direitos e eram tratadas na informalidade. Isso porque ainda não existia a PEC das Domésticas que, ao ser aprovada, garantiu direitos como salário mínimo, jornada de trabalho de 44 horas semanais, férias, direito ao pagamento de 50% do adicional de horas extras, décimo terceiro e aposentadoria.

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Câmara dos Deputados aprova o texto-base de regulamentação dos direitos dos empregados domésticos.
Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

Em um ponto de vista histórico, a empregada doméstica só passou a ser vista como um trabalhador com todos os direitos de um trabalhador celetista há um pouco mais de seis anos”, diz Paula Verçosa, advogada trabalhista e especialista em Direito do Trabalho. “Isto explica muito essa cultura de que os empregadores do âmbito doméstico podem tudo e que o incremento da miséria e da pobreza implica na submissão da empregada às condições precárias de trabalho”.

Apesar da PEC das Domésticas, ainda há empregadas que não têm carteira assinada. No entanto, trabalhadoras domésticas que sofreram cárcere privado e estão na informalidade devem, ao denunciar sua situação, ter o mesmo tratamento de quem possui o registro.

“Primeiramente, temos que ter em mente que a carteira assinada é mera formalidade e obrigação do empregador. Sendo registrada ou não, todos são tutelados pelo Código Penal e não haverá diferenciação para o tratamento e proteção da vítima. Aliás, quanto maior a hipossuficiência do trabalhador, maior deverá ser a tutela estatal de proteção”, explica a advogada trabalhista.

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Consequências do cárcere privado: psicológicas e físicas

As consequências psicológicas e físicas envolvendo indivíduos mantidos em cárcere privado podem ser diversas. De acordo com Verçosa, quem teve esses danos deve pedir os tratamentos necessários: “Independente dos empregadores cumprirem pena no âmbito criminal, eles também devem reparar o dano causado na empregada, seja ele físico, como o custeio de um tratamento médico, ou psicológico”.

A especialista explica que, além dos danos materiais e morais, os patrões também podem ser condenados a ressarcir valores que a trabalhadora deixa de ganhar enquanto está impossibilitada, por conta de ferimentos que sofreu. “Junto a tudo isto, podem ser condenados ainda no pagamento de indenização por danos morais, podendo chegar a 50 vezes o último salário contratual da empregada, se o dano for de natureza gravíssima”, afirma.

Por que muitas trabalhadoras domésticas não denunciam?

Mesmo com o conhecimento de que o cárcere privado é crime, grande parte das trabalhadoras domésticas não denuncia sua situação pelo medo de ficarem desempregadas, como explica Avelino: “O principal motivo é a necessidade do emprego e do salário. Às vezes, elas têm medo do empregador não dar boas referências futuras, de contar inverdades e prejudicá-las”.

Para denunciar uma situação de cárcere privado, disque 100 ou utilize o aplicativo MPT Pardal, do Ministério Público do Trabalho.

Editado por Julia Queiroz.

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