Da família, mas nem tanto: o penoso cotidiano das empregadas domésticas no Brasil - Revista Esquinas

Da família, mas nem tanto: o penoso cotidiano das empregadas domésticas no Brasil

Por Bruno Genovesi, Douglas Norberto, Letícia Rodrigues, Lucca Favano e Vitor Leite : março 10, 2021

Por todo o Brasil, empregadas domésticas tem uma rotina de trabalho diferente da maioria dos empregados brasileiros

O relógio marcava 13h13 do dia 2 de junho de 2020. Após um breve passeio com a cachorra dos patrões, Mirtes de Souza chega ao apartamento na região central do Recife onde trabalha como empregada doméstica. Ao entrar no elevador, o zelador do edifício a informa de que alguém acabara de cair do prédio. Quando vai procurar saber o que de fato aconteceu, Mirtes encontra o corpo de Miguel, de 5 anos, estirado no andar térreo do condomínio. Ela se desespera, olha para o céu e pede por clemência. No entanto, mesmo tendo despencado do nono andar, o garoto ainda está vivo. Ele é levado ao hospital, mas não resiste aos ferimentos e morre minutos depois. Mirtes acabava de perder seu único filho. Nos dias seguintes, o caso é destrinchado pela polícia e mais informações são descobertas. A patroa da mãe de Miguel, Sari Côrte Real, é vista nas imagens das câmeras de segurança deixando o menino entrar desacompanhado no elevador e apertando o botão que leva à cobertura. Cada traço desse trágico incidente desencadeou, por todo o Brasil, um sentimento de revolta com a situação, mas sobretudo um debate a respeito das condições de trabalho das empregadas domésticas.

A despeito de o momento de pandemia recomendar o isolamento social, Mirtes continuava trabalhando da mesma maneira, assim como milhares de outras trabalhadoras do ramo pelo país, tendo inclusive que levar Miguel consigo pela suspensão das aulas na creche do garoto.

Ademais, o descaso de Sari — esposa do prefeito de Tamandaré (PE), cidade distante 108 quilômetros da capital do estado — em relação ao filho de sua empregada levantou uma discussão sobre a forma que essas trabalhadoras são tratadas. Além de receberem um baixo salário, elas são muitas vezes submetidas a condições e tratamentos sub-humanos, com poucos ou nenhum direito.

Trabalhadoras domésticas: para além do caso Miguel

Elbinha, como é conhecida Elba Marques da Silva, alagoana de 47 anos, faz parte dessa estrutura social. Há dezesseis anos trabalha como doméstica na casa de Antonia Penteado, 18 anos, a quem sempre enxergou e cuidou como uma filha, muito embora nunca tenha sido mãe. “A Elba não tem filhos, e eu tenho a impressão de que isso aconteceu porque ela sempre via a gente (Antonia e as irmãs) como filhas e se sentia na obrigação de cuidar como uma mãe, só que ao mesmo tempo ela não é nossa mãe. Deve ser muito doído considerar alguém como filho, mas saber que no fundo essa pessoa nunca vai ser sua filha”, observa Antonia.

Elba Marques da Silva, a Elbinha (foto: Douglas Norberto)

A discussão sobre essas mulheres serem consideradas “da família” é uma das mais presentes no debate sobre as empregadas domésticas hoje em dia, já que muitos empregadores têm por costume classificá-las assim.

Tal conduta, no entanto, revela uma certa desumanização dessas trabalhadoras, à medida que se parece esquecer de que elas já têm uma família: a delas mesmas. Quanto a isso, Antonia atesta: “Tratar como funcionária deveria ser um padrão, para elas sentirem que podem cuidar de suas próprias famílias e não se verem obrigadas a cuidarem das famílias dos outros. O ideal seria esse”.

Elbinha, por sua vez, assim como é de costume com tantas outras trabalhadoras domésticas, não vê muito problema em toda essa situação. “Sou tratada como uma princesa, de casa, não tenho o que reclamar não. Porque têm muitas que não são bem tratadas, mas eu sou sim. Eles me ajudaram a comprar um apartamento lá na Zona Leste, se não fosse eles eu não tinha. Eu não tenho do que reclamar não”, afirma.

Em contraste com a situação de Elbinha, Clei, 35 anos, não se vê como parte da família em que é empregada. Apesar de há nove anos trabalhar na casa de Nicole Conchon, 18 anos, e por lá se sentir bem tratada, ela mesma não se considera uma familiar de seus patrões. “Eles me tratam bem, mas eu sei o meu lugar, igual às vezes quando a Ni era pequena a doutora Mônica falava para eu trazer o Cleiton (filho de Clei) pra tomar banho de piscina, mas eu não acho legal misturar as coisas”, admite.

Veja mais:

+ Deixa ela jogar: Maioria no mundo dos games, mulheres são vítimas frequentes do machismo nos e-sports

+ “Escravinho do Dória”: repórter de Esquinas é xingado em protesto contra lockdown

+ “Bolsonaro tem resistência a melhorar”, diz Janaína Paschoal

Para Nicole, todavia, devido a sua proximidade com Clei, ainda é difícil separar as funções. “Por muito tempo antes de eu me tocar como é o contexto de tudo isso, eu enxergava a Clei não como uma empregada, mas da família mesmo. Eu falava muito mais ‘eu te amo’ pra ela do que para meu pai. Eu comecei a falar muitas coisas para ela e fui percebendo que isso é problemático, mas ao mesmo tempo não dá pra não ser assim, pois ela é muito importante pra mim. É muito intenso. Ela não é da família, mas dentro de mim ela é muito mais que uma moça que trabalha em casa”, assume.

Clei e Nicole (Foto: Douglas Norberto)

Atualmente, mesmo que exista uma série de barreiras para uma melhor relação entre empregada e empregador, é inegável que, no Brasil, a situação tem melhorado nos últimos anos. Desde 2013, com a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) das Domésticas, muitas conquistas foram alcançadas no que diz respeito aos direitos dessa classe trabalhadora. Progressos como uma jornada de trabalho definida, férias remuneradas e décimo-terceiro salário foram resultados do projeto de lei, ao menos para aquelas domésticas contratadas sob carteira assinada.

Contudo, o problema é que, ainda hoje, no trabalho doméstico a informalidade é predominante, como conta Nathalie Rosário, advogada do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo, o Sindoméstica: “Hoje, para cada três empregados apenas um tem o registro, então as reclamações que a gente mais recebe são de empregadas que trabalham sem o registro e quando são dispensadas não têm o recolhimento do fundo de garantia, o INSS nem as metas rescisórias, direitos mínimos que deveriam ser garantias”.

Outra adversidade jurídica passa pela questão do seguro desemprego, cujo valor é bem menor se comparado ao do trabalhador celetista, isto é, aquele que tem sua relação regida pela CLT (Consolidação das Leis de Trabalho). “O que diferencia bastante ainda os domésticos dos empregados celetistas é o seguro desemprego, que para os celetistas pode chegar a até cinco parcelas de R$ 1.813,09, enquanto a doméstica é padrão receber três parcelas no valor do salário mínimo. Isso é algo que ainda deixa a gente bem indignado, realmente”, conta Nathalie.

Mas nem tudo fica restrito ao meio legal. O trabalho doméstico, por ser realizado dentro da casa de alguém, envolve outras questões afetivas, o que significa que se trata de um ofício que abrange um pouco mais de sentimento do que os demais. “A doméstica às vezes espera um reconhecimento, um pedido de desculpas ou um obrigado, que às vezes não vêm”, relata a advogada do Sindoméstica.

Gráfico construído a partir de dados do IBGE

Boa parte desse panorama é reflexo de questões históricas, oriundas do período colonial, quando surgiu o trabalho doméstico como é conhecido hoje no Brasil. À época, era uma ocupação exercida por homens e mulheres negros, normalmente escravos, tendo sido sempre considerado um tipo de trabalho desonroso. Ainda hoje, no entanto, parte dessa herança é bastante acentuada, o que explica o descaso que há perante essa classe trabalhadora.

Acrescenta-se a tais coincidências — ou não — históricas o fato de que, mesmo com a abolição da escravidão, já há mais de 130 anos, os sujeitos sociais em exercício da função são em geral os mesmos da época do Brasil Colônia. Dos 6,2 milhões de brasileiros empregados como trabalhadores domésticos em 2018, 3,9 milhões eram mulheres negras, o equivalente a 63%, o que também demonstra como usualmente esse tipo de trabalho acaba recaindo aos setores mais marginalizados da sociedade.

Os perfis se repetem: mulheres, negras, com baixa escolaridade, moradoras de regiões periféricas e no geral migrantes do Nordeste do Brasil. Moças que passam fartas horas de seus dias nos lares onde trabalham, ou no transporte público frequentemente abarrotado. Por vezes têm de negligenciar sua própria família para tomar conta da dos outros, e não são raras aquelas que acabam por morar no serviço. É o exemplo de Maria, mais conhecida como Dadá, que há quinze anos trabalha na casa de Adriano. “Mas eu gosto (de morar no serviço), nunca dormi em casa, sempre dormi no serviço, aí já acostumei. Não me arrependo”, pondera.

O trabalho doméstico na pandemia

Durante a pandemia do novo coronavírus, no entanto, esse panorama a que Dadá conta ter se acostumado sofreu algumas alterações. “A mudança foi que fiquei uns tempos aqui, mas foi por opção minha, não foi o seu Adriano que disse ‘você fica e não vai’. Fiquei uns três meses aqui sem ir pra casa, mas isso fez bem pra mim, não fiquei indo e voltando, não perdi meu emprego, não fiquei também ganhando meu dinheiro às custas dele. Fiquei na boa aqui, eu não tenho filho lá em casa, né? Eu me sinto bem com o seu Adriano, gosto dele. Ele me chamou pra conversar e me deu a opção: ‘Dadá, eu vou te pagar, mas você sabe, se você quiser ficar não pode ficar indo e vindo por causa da pandemia’. Aí eu falei que eu ia ficar até quando desse, agora que já tá um pouco mais leve quando eu saio ele manda o motorista me levar pra onde eu preciso.”

Entretanto, não é surpresa para ninguém que boa parte dos patrões não tem esse mesmo cuidado para com as domésticas, as expondo a situações bastante perigosas, como as aglomerações no transporte público. Muitos, também, no instante que suas funcionárias necessitaram parar de trabalhar, suspenderam os pagamentos dos salários.

Quanto a esse problema, Nathalie Rosário, do Sindoméstica, avalia: “O fato é que essas domésticas vão ficar desamparadas, então o que a gente vem trabalhando desde o início da pandemia com o sindicato patronal de São Paulo é uma política de conscientização para, se esses empregadores mantiverem os contratos de trabalho, que é o que a gente espera, que eles forneçam os equipamentos essenciais de segurança indispensáveis e que propiciem um meio de transporte seguro. Se caso as domésticas precisem se locomover com o transporte público, que haja uma política de flexibilização de jornada, pra doméstica entrar mais tarde, sair mais cedo, pra evitar o horário de pico”.

Embora o momento seja delicado, são vários os patrões que nem consideraram a possibilidade de oferecer quaisquer benefícios para suas empregadas. Essa é a experiência de Alina, 51 anos, moradora de Campinas, São Paulo. “Continuei trabalhando normalmente, não mudou nada. Não cogitaram nada disso”, explicou sobre sua situação de trabalho desde o início da quarentena.

No entanto, as condições de trabalho de Alina já não eram ideais mesmo antes da pandemia. Agora, parece que o coronavírus contaminou ainda mais aquele ambiente hostil. Ela, que trabalha na casa de sua vizinha, uma senhora de 94 anos, já teve problemas antes mesmo da quarentena ao demandar que sua patroa honrasse acordos que tinham sido firmados quando foi contratada: “O combinado foi que eu viria para minha casa todo dia para almoçar, sem horário específico. Mas como os meus filhos entram na escola às 13 horas, eu falei que queria estar aqui para ajudar o meu marido a dar o almoço, meio-dia e meia, quinze para uma, e ficaria aqui até 13 horas. Só que eu não consigo vir. É muito raro, dá para contar nos dedos os dias em que eu vim para casa na hora do almoço. Porque ou ela está dormindo ou ela não almoçou e eu não consigo sair. Ou tem muita coisa para fazer e, se eu for parar para vir aqui, depois eu saio só às sete da noite, então eu acabo ficando lá. Então eu sento, almoço com eles, mas vir para minha casa é muito raro”.

A relação com a patroa também não é das melhores. “Ela tem 94 anos, é lúcida, mas é uma pessoa que sempre foi muito autoritária. Sempre mandou em tudo, o controle de tudo é dela, então ela não aceita muitas vezes que eu, por exemplo, mude o vaso de lugar, ou que eu converse muito com os filhos dela, com o neto dela. Ela tem muito ciúme deles, a possessividade dela é muito grande, então às vezes eu me sinto humilhada, me sinto chateada, já cheguei até a chorar”, revela Alina.

domésticas

Alina (Foto: Letícia Rodrigues)

Domésticas nos Estados Unidos: uma realidade diferente

Ser uma trabalhadora doméstica no Brasil, como visto, não é tarefa fácil. A realidade é mais difícil do que o esperado e nem sempre os direitos básicos de um trabalhador são garantidos. Porém, em outros países, a experiência tem suas diferenças, como conta Tarika, de 44 anos.

Durante os anos 2000, Tarika morava na Flórida, Estados Unidos, onde trabalhava como empregada doméstica. “Lá é diferente daqui. É uma empresa de empregadas domésticas, as housekeepers, e um grupo é designado a um condomínio, por exemplo. Vão dez para esse condomínio. Essas dez têm que limpar vinte apartamentos. Entram de duas em duas. Se for muito grande, três em três. A gente fazia em média três, quatro, cinco apartamentos num dia. É diferente da limpeza daqui, né?”

As diferenças não param por aí. Quando perguntada sobre se sentir parte da família nos anos em que trabalhou no exterior, Tarika confidenciou outra distinção entre como as trabalhadoras são tratadas no Brasil e nos Estados Unidos: “Eles te tratam bem, mas existe essa separação, sabe? Brasileiro é muito humanitário, muito calor humano, né? Lá não tem isso. Aqui no Brasil é diferente. O funcionário, seja ele qual for, jardineiro, empregado, limpador de piscina, não importa. Você vai lá e você oferece um café, você senta para conversar. Lá não. Eles não têm essa relação”. Já sob a perspectiva legal, os americanos levam vantagem. “Eles sempre respeitaram muito a lei. Você foi contratada para isso, então é isso que você vai fazer”, conta Tarika.

domésticas

Tarika (Foto: Letícia Rodrigues)

 Mais do que da família, uma melhor amiga

Na contramão de alguns casos acima apresentados, para Giuliano Balzano, 18 anos, a relação com a trabalhadora de sua casa vai ainda além de simplesmente considerá-la parte de sua família. Rosiene Jacob, a Rosi, é também sua melhor amiga. Justo ela, que esteve por perto desde antes dele nascer até poucos dias atrás, quando foi morar no interior e finalmente pôde descansar de longos anos de seu penoso cotidiano. Afinal, cinco vezes por semana ela tinha de acordar às três da manhã para chegar ao serviço antes das seis.

A despedida, é claro, foi emotiva. Em depoimento para a reportagem, Giuliano confidenciou que não quer nem pensar em como será a vida daqui para a frente sem sua melhor amiga e confidente por perto todos os dias. E que sentirá saudade. Não como sentimos de alguém que trabalhou por certo tempo em nossas casas, mas de um melhor amigo que, por algum advento ou circunstância da vida, teve de se ausentar permanentemente.

Escondidas atrás de seus uniformes milimetricamente ajustados, com seus cabelos encarcerados no interior de toucas de cozinha, muitas vezes as trabalhadoras de nossas casas são por nós esquecidas. Invisíveis, quiçá. Ao passo que as limitamos como simples engrenagens de um sistema, nos esquecemos de que elas são pessoas de sonhos, gostos, hábitos e inseguranças, assim como nós. De que são mulheres como Dadá, aquela moça que apresentamos algumas linhas acima e revelou para a reportagem: “Gostaria de ter sido jornalista (…) se eu tivesse estudado teria sido jornalista. Eu acho lindo. Era isso aí que eu queria, mas estou feliz com minha situação agora”. Conhecendo as trabalhadoras domésticas, suas histórias e seu penoso cotidiano, a conclusão é simples, mas categórica: precisamos evoluir como sociedade.

Encontrou algum erro? Avise-nos