Como uma baiana e um jabuti fizeram história em ocupação de um dos prédios mais icônicos de SP - Revista Esquinas

Como uma baiana e um jabuti fizeram história em ocupação de um dos prédios mais icônicos de SP

Por Thaís Bueno, Lara Sanchez, Isadora Costa e Maria Edhuarda Castro : novembro 30, 2021

Fotos: Lara Sanchez / Maria Edhuarda Castro

“É a partir da compreensão dos direitos constitucionais sobre a moradia que se sustentam as ações diretas”

Thaís Bueno, Lara Sanchez, Isadora Costa e Maria Edhuarda Castro são alunas do curso de Jornalismo da Cásper. Reportagem republicada simultaneamente pelo site Brasil de Fato.

Quem nos leva até ela é Rubens. Paulista, o geógrafo nos guiou rumo à casa conquistada pela mãe. Resultado da luta de anos do Movimento de Moradia no Centro (MMC).

Estamos no icônico edifício Rizkallah Jorge, na avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo. Inaugurado como prédio de luxo em 1947, foi abandonado na década de 1980 e posteriormente ocupado. Tombado e restaurado na virada do século, tornou-se moradia popular. O lar de Anita fica no 10° andar. É um dos 167 apartamentos de 24,4m² a 45m² com no máximo um dormitório que preenchem os 17 pavimentos do edifício.

Desde que foi abandonado, o Rizkallah Jorge foi ocupado irregularmente por movimentos de moradia e depois desocupado mais de uma vez. Em 2001, foi comprado por uma construtora.

Dois anos depois, com recursos do PAR (Programa de Arrendamento Residencial), da Caixa Econômica Federal, adaptou as salas para 167 apartamentos e o imóvel foi destinado à moradia popular. O programa foi precursor do “Minha Casa, Minha Vida”. Em 2003, as unidades habitacionais foram entregues aos moradores que faziam parte do programa, Anita entre eles.

Hoje, o prédio está vivo. A heterogeneidade do local é logo percebida: os grafites e as pichações, chamadas por Rubens de “manifestações da cidade”, enfeitam o exterior da ocupação de mármore. O elevador original era de madeira. Enquanto subimos, ele também se transforma num elemento da história. Aquilo que antes se apresentava como um perigo para o transporte, hoje, graças às intervenções estatais aprovadas por seus habitantes, agora é de metal.

Como os modernos elevadores devem ser. Os atuais moradores — em sua maioria, idosos nordestinos, vanguarda do movimento — agora podem se locomover sem grandes problemas.

moradia

Portaria do edifício Riskallah Jorge, inteira em mármore.
Lara Sanchez

“Na época que mudamos, o negócio era muito feio, muito complicado. Os filhos das mulheres que eu não conhecia eram ‘tudo drogado’. Você chegava na portaria à noite e tinha que pedir licença ‘pra’ entrar, porque ficava uma muvuca lá fora. Agora o negócio ficou muito bom, porque tem síndico, tem uma portaria decente”, diz Anita Fernandes da Silva, moradora do apartamento 1001. Ela já trabalhou como copeira, costureira e atualmente, aos 73 anos, é cuidadora de idosos não registrada.

O processo de conscientização e subsequente politização dos povos nordestinos nas terras paulistanas é concomitante à industrialização. Na mesma medida que a urbanização imobiliária da cidade acontecia sob as muitas mãos de obra do Nordeste, também lhes era reservada a culpa do aumento da violência, criminalidade e “favelização” dos locais que ocupavam. A acolhida dessas pessoas eram pensões, hotéis e cortiços distantes da infraestrutura que ajudavam a construir.

“É a partir da compreensão dos direitos constitucionais sobre a moradia que se sustentam as ações diretas, a luta por mais políticas habitacionais e a massiva associação nordestina ao movimento por moradia”, diz Rubens.

Anita veio de família humilde. “Toda desnorteada”, como ela mesma diz. Seu pai saiu da Bahia e foi para outros estados do Norte e Nordeste, casou-se com outra mulher que conheceu nessas idas e deu a Anita cinco irmãos por sua parte. Faz dois anos que ele faleceu, aos 92. “A gente sempre foi uma família pobre, mas sempre trabalhando para ter o que queria. Eu quase nem estudei, porque tinha que trabalhar na roça. Foi difícil a vida.”

Anita se aventurou, aos 24 anos, a sair de Itamaraju, na Bahia, para se instalar numa cidade hoje quase duzentas vezes maior — São Paulo. Conheceu Manoel, pai de Rubinho, como carinhosamente se refere a Rubens, e de Paulo. Depois do casamento, foram tocar a vida na Mooca, bairro paulistano na Zona Leste que leva fama por ter abrigado, de acordo com as demandas históricas, desde imigrantes europeus (principalmente italianos) até operários brasileiros.

Quando já não se via mais em condições de pagar mensalmente para ter onde morar, optou por uma alternativa que à primeira vista já lhe parecia atrativa: o Movimento Luta por Moradia.

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“Eu paguei aluguel por mais de 30 anos, quase 50. Aí surgiu essa oportunidade da gente participar do movimento sem teto. Eu participei de uma reunião numa igreja e fiquei assim mais uns cinco anos”, diz Anita.

Nesse período, entregou-se fiel e totalmente ao MMC. Ainda que seguisse trabalhando numa empresa de importação e exportação, participou de ocupações que, segundo ela, chegavam a durar três dias. Não só ela, mas colegas de trabalho e trabalhadoras de outros ramos que participavam das reuniões — que eram exclusivas às mulheres trabalhadoras — tinham que faltar no serviço, geralmente às sextas e sábados à noite.

“A gente tinha que sair de madrugada, pegar ônibus escuro para poder ocupar aqueles prédios abandonados, ficava lá dentro sem água, sem luz. Era uma coisa de louco. Foi tudo com muito sacrifício, eu correndo atrás das coisas, meus filhos ainda muito pequenos, mas graças a Deus eu consegui uma moradia digna. Foi uma luta muito grande.”

A luta deixou marcas:

“Eles [policiais] vinham com aquele farolzão no seu rosto que você não enxergava nada. A gente andava, e eles iam andando atrás, davam borrachada para a gente não entrar no prédio, jogavam bomba. Foi um terror, se a gente fosse mole, mesmo, teria desistido. Mas eu bati o pé firme, falei assim: ‘não vou desistir”, conta Anita.

Como ela, tantas outras. Anita conta de uma vez, de uma outra senhora, numa ocupação de um prédio na Avenida do Estado, e de uma porta de vidro estourada, no meio da confusão: “Ela saiu de lá mancando, o joelho todo ensanguentado, e até hoje ela tem problema para andar. Mas ela também não desistiu. Hoje mora aqui, no 15.”

 

Quadros e plantas da recepção, mantidos pelos moradores.
Maria Edhuarda Castro

O preconceito por ser “do norte” aumentou, porque Anita era também militante. O termo “favelado”, que categoriza e subjuga os pobres, era o que lhe cabia, a aos outros como ela: “(Os vizinhos) falavam que aqui era uma favela e que o pessoal daqui estava morando de favor, que era invadido, mas não foi nada disso. Todo mundo entrou aqui pagando. Nós invadimos prédios, sim, para conseguirmos nossa moradia, mas aqui é uma moradia digna”.

Fez amizades no movimento, guardou memórias e criou laços. Uma parte deles ainda existe dentro do Rizkallah Jorge — conquistaram a propriedade do apartamento junto com ela: “Não consigo lembrar de todos, mas cada casa tinha alguém que veio de um lugar do Nordeste.”

Ela vive sozinha com seu jabuti Tico em seu pequeno apartamento de 38,5 m² no centro de São Paulo. Atualmente, o filho Rubens, o “mais estudioso”, em suas palavras, tem passado os dias com ela por conta do mestrado.

O geógrafo reconhece a luta que ajudou sua família a conquistar uma casa própria. Mas pondera que existem diversos pontos a serem melhorados para que o governo possa, enfim, assegurar uma qualidade de vida digna para essas pessoas: “Talvez a política de habitação necessite de linhas parecidas com o PAR, garantindo uma condição ainda maior de amparo para quem mora no centro. O valor que as pessoas pagam de aluguel não pode ter a ver com a valorização do imóvel ou levar em conta quanto ele vale dividido pelo metro quadrado”.

 

Anita está feliz em São Paulo. Ela não voltaria para sua terra natal, porque cultivou afetos e afinidades que só podem ser mantidos aqui. Ela nem sequer gosta mais de onde veio — só voltou uma vez, a passeio. Não gosta das recordações de quando “passava sufoco”, morava com os outros — mas, ao mesmo tempo, gosta de tudo da sua moradia atual, dos serviços que a capital paulista proporcionou e de tudo que ela edificou na cidade: “Eu sempre falo para meus dois filhos, o Rubinho e o Paulo: ‘se a mãe não tivesse conseguido essa moradia aqui, não tivesse participado daquele movimento, eu não sei onde que eu estaria’”, conta.

Ela continua: “Eu tenho esse apartamento porque eu participei do movimento e dou a maior força para quem quer participar. Eu falo sempre ‘vai lá, participa e faz tudo direitinho que você consegue’”.

E conclui; “Demora, não é de uma hora para a outra, mas tem que ter paciência e participar de tudo, tem que estar junto para poder conseguir, mas consegue, sim. É só ter vontade de ir à luta.”

Editado por Vinícius Segalla

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