Passageiras e mulheres motoristas de aplicativo relatam casos de assédio e a tensão vivida ao viajar, ainda que por apenas cinco minutos, com um desconhecido
Tarde de um dia ensolarado. 17:30 no relógio. Cansaço acumulado da semana e a espera para aliviar o estresse em um encontro com os amigos. Ela se arruma para aproveitar um fim de tarde na piscina e chama um carro em um aplicativo de viagem, torcendo para que seja uma mulher. Não é. O que era para ser uma corrida de cinco minutos se tornam os piores cinco minutos de sua vida. Andar sozinha com um homem é estranho, gera sentimentos de tensão. Ao entrar no carro, o motorista já começa a puxar assunto. Questionada sobre sua idade, ela mente ser um ano mais velha. Afinal, está desconfiada. Segue o trajeto até a casa de seu amigo sem dar muita bola para o motorista, uma espera infinita até chegar ao destino. Então, quando chega, o amigo não está esperando no portão. O motorista tranca o carro, vira-se para ela aproximando-se, e começa o assédio: “Bem que seu amigo poderia demorar para chegar, né, gostosa?” O medo toma conta. Neste momento, seu amigo aparece, bate no vidro e o motorista ainda apresenta relutância em abrir o carro. Então, o pai do seu amigo aparece e o motorista fala: “Salva pelo gongo, hein, gata?”
Muitas vezes, a dúvida pode parecer algo casual, mas em casos de abuso ela sempre surge como uma constante. Nem sempre por má intenção, mas existe uma cultura de negação onde todas as possibilidades são questionadas antes, até por fim se falar de fato sobre o assédio. Isso ocorre até mesmo em processos de denúncia, e é um dos motivos que acabam inibindo a vítima a falar sobre isso.
Essa poderia ser apenas uma história específica, retirada de uma pesquisa realizada para esta reportagem pela ferramenta Google Forms. Mas muitas mulheres já se viram em situação similar. Na pesquisa com 277 mulheres da região Sudeste, 48,4% delas já recusaram corridas por medo de sofrer algum tipo de violência.
70% não se sentem confortáveis em usar o aplicativo sozinha. assédio
65% das mulheres já constataram mudança de comportamento do motorista/passageiro por estar sozinha. assédio
Priscilla Gonçalves, 30 anos, motorista da Uber há nove meses, é mãe solo e chegou a depender apenas do aplicativo para se manter. Segundo ela, esse trabalho é uma ótima oportunidade para quem está desempregado, mas também de muito risco. A motorista, que agora está com emprego fixo, faz corridas nos finais de semana para complementar sua renda, e ressalta que, na maioria dos casos, quem está fazendo esse trabalho o faz por necessidade. “É uma coisa no escuro, pegamos todo tipo de passageiro, não sabemos a índole da pessoa. Acredito que para a mulher não é uma coisa muito boa, se torna ainda mais perigoso.”
Priscilla diz que passageiras sempre dizem se sentir mais confortáveis com motoristas mulheres, assim como motoristas mulheres se sentem mais confortáveis com passageiras.
“Eu pensei: já era.” Foi o que passou pela cabeça de Gabriela Takeuchi, 18 anos, por volta das 16 horas de mais um dia comum na vida de uma vestibulanda. Cansada por passar o dia inteiro na escola e sem ninguém para buscá-la, a única alternativa para voltar para casa é pedir um Uber. O carro chega, ela confere a placa e o motorista. Entra no carro, com livros, bolsa e demais materiais escolares, sem muita vontade de conversar pelo cansaço. O motorista, que aparenta ter 50 anos, começa a puxar conversa. Pergunta o que ela faz, depois sua idade. O condutor passa a fazer perguntas mais pessoais, como: “você tem namorado?” “e seus ‘contatinhos?’ ”, até chegar no “na sua idade eu gostava de ficar com meninas igual a você”. E o pensamento do início do parágrafo vem à tona. Olhares pelo retrovisor intensificam a tensão. A sua reação não é a planejada para situações como essa.
Com o tempo, a busca por segurança em viagens de aplicativo foi moldando o comportamento de Gabriela nessas ocasiões para que o assédio não aconteça.
Para ela, a Uber foi atenciosa ao disponibilizar a opção de não se identificar e mandar email para que contasse o que aconteceu. Fator que a deixou surpresa.
Experiente, Edna dá dicas para mulheres sobre como se comportar em situações de assédio. Conta ainda que em grande parte das histórias que ouviu não houve denúncia e boletim de ocorrência, pois as passageiras têm medo. Ela relatou um caso de uma de suas passageiras:
“A passageira morava muito longe, eu peguei ela na Zona Norte e ela morava perto da Rodovia Raposo Tavares [Zona Oeste], no caminho ela foi me contando a história. Ela é uma executiva e estava trabalhando até tarde (19:30/20:00). Chamou o aplicativo (Uber) e era um rapaz que aparentava ter de 30 a 35 anos. Ela me contou que entrou no carro e pediu desculpas para ele falando: ‘Olha, desculpa não te dar atenção, mas eu estou trabalhando e vou continuar trabalhando aqui no meu notebook’. Quando o motorista pegou a rodovia, ele entrou em uma rua com matagal dos dois lados. Ela já se sentia constrangida, porque ele ficava olhando pelo retrovisor do carro. Depois que ele entrou na rua, calmamente ela perguntou: ‘O senhor saiu da rota?’ E ele simplesmente não respondeu, só fez ‘psiu’ e ela ficou quieta. Então, o telefone dele toca, o carro estava a 5 km/h, ela percebeu que a pessoa com quem ele estava falando era sua mãe. Ele atende e fala ‘Tá bom!’ e desliga. Perguntei para a moça: ‘Você não fez nada?’ e ela disse que não. Quando ele a deixou no destino, disse: ‘Eu não desfiz a rota, o GPS que pediu para eu entrar ali’. Eu falei para ela que não saberia qual seria a minha reação diante de uma situação dessa, porque ele era um psicopata. Mas ela agiu com calma e eu tiro o chapéu, porque eu não teria essa calma. Eu não calaria a minha boca, mas cada um tem um jeito de agir, ela foi salva pela mãe do cara, pronto! Ela não fez B.O., não comunicou a polícia e não sei o que houve”.
Outra história que a marcou muito expõe ainda mais a situação de perigo que as mulheres vivenciam em aplicativos de viagem.
Era um trajeto conhecido, uma rota familiar. Você pega um carro de aplicativo e desconfia do motorista assim que ele para na porta. Tirar o tapete do carro e limpá-lo na sua calçada? Não é uma atitude usual. Assim que ele entra em uma rua estreita, escura e sem movimento e avisa que é para “consertar o GPS”, a insegurança toma conta do seu corpo e explode com um grito: “Não vai parar aqui! Você pode consertar isso no centro, num lugar iluminado, aqui você não vai parar!” De má vontade, ele segue viagem.
Na chegada, o motorista resolve cobrar R$ 37,00 por uma viagem que costuma custar R$ 11,00. Você logo entende, é como se fosse uma represália por não tê-lo deixado parar o carro. Estressada com todo o ocorrido, sai e afirma: “Não vou pagar! Irei contatar a Uber”. Estela Trajano, 18 anos, foi quem vivenciou tudo isso em Volta Redonda, Rio de Janeiro. Ela desabafa sobre a situação do assédio das mulheres nos aplicativos:
Para além dos aplicativos
Assédio em viagens de carro não acontecem apenas em aplicativos virtuais, mas também em táxis e empresas de mobilidade. Imagine: evento de trabalho importantíssimo, meses de organização e espera para o dia. Neste, em específico, todas as suas colegas estavam trabalhando de casa, para conseguirem se arrumar tranquilamente. Nervosa, chorou de ansiedade antes de sair de casa. Esperou o carro que a empresa contratou, com o rosto ainda vermelho e inchado do choro. Tudo aparenta estar normal no início. Você mora no ABC Paulista e tem de ir à Sala São Paulo, onde ocorrerá o evento. Entra no carro, a viagem vai passando. O motorista faz algumas perguntas e você responde com naturalidade. “Onde eu te peguei é sua casa?”, “onde você está indo?”, “você mora sozinha?”, “você está indo visitar alguém?”. Essas você respondeu verdadeiramente sem nenhum problema, afinal já havia utilizado o serviço da empresa outras vezes. Até que ele pergunta: “Por que você está chorando?” Você pensa que tudo bem o questionamento, mas não depois das perguntas feitas anteriormente.
O desespero bate. Você reparou que ele dirigia mal, fazia paradas bruscas, utilizava o celular enquanto dirigia. O percurso você não conhece, pois nunca havia ido à Sala São Paulo. Durante o trajeto, repara no celular preso no painel do carro, o grupo de conversas do motorista tinha como ícone uma mulher, com apenas homens conversando. Era um daqueles típicos grupos de homens, até aí tudo bem. Porém, o motorista baixa e abre diversas fotos de imagens íntimas de mulheres. Você envia a localização para sua amiga, mas pensa em todas as possibilidades para sair daquela situação: pular do carro, parar a viagem, ligar para a polícia. Mas, como? Você não tinha ideia de onde estava, se saísse do carro, o que aconteceria? Assalto, problemas com o celular, falta de bateria…
Seguiu viagem, pensando nas possibilidades, até que chegou ao seu destino. Coloca os pés na Sala São Paulo pela primeira vez e desaba. O choro e choque tomam conta. A percepção do que havia acabado de acontecer a faz notar o assédio que havia sofrido. A sensação iminente de não querer estar na própria pele. Você é acolhida por suas colegas de trabalho, que tentam te acalmar, perguntam o que aconteceu, a sensação de segurança que outras mulheres te passam ajuda a superar o momento. A noite acaba tranquila. No dia seguinte, sua chefe questiona o que você quer fazer a respeito.
Você denuncia para a empresa, recebe apoio de todas as suas colegas e sua chefe te informa de tudo o que está acontecendo com o caso. No final, a conclusão foi “satisfatória”, já que o motorista foi afastado da empresa privada de táxis. A satisfação era saber que mais nenhuma mulher teria de passar por aquilo, pelo menos não naquele carro, não com aquele homem.
Isso pode parecer história de filme, mas não. Essa é a história da Pamela, 21 anos, de Santo André. Ela desabafa sobre como o assédio não é apenas físico, mas também psicológico.
O desligar do motor e ao bater da porta
Os relatos contados fazem parte de um contexto que revela não só casos isolados, mas toda uma sociedade construída a partir de valores patriarcais, refletidos em todas as instâncias da comunidade, inclusive nas relações entre motoristas e passageiras.
A construção de uma sociedade é pautada pelo passado, mas realizada no presente. A continuidade de assédios, de motoristas e passageiras mulheres em corridas de aplicativos de viagem, mostra que o retrovisor parece ser a única visão tida para traçar a rota do presente. É um presente que remonta o que já passou, e vai em direção a um futuro na mesma estrada. Sem a perspectiva de uma mudança no trajeto.
O medo sentido por mulheres ao adentrar um carro de aplicativo, viajar com um estranho (mesmo que por cinco minutos) e não chegar bem em casa é algo incompreensível para os homens. Mesmo que tentem entender, não vão. Porque esse é o retrato concreto e duro de uma viagem sem volta: ser mulher. Ao final do dia, ao desligar dos motores, ao bater das portas, existe o ritual silencioso de agradecimento, de chegar bem ao destino, de acabar uma jornada de trabalho. Mas a angústia sempre se faz constante ao ler relatos como esses e pensar: “E se eu for a próxima?”