No dia do fotojornalista, profissionais pretos comentam contraste racial  - Revista Esquinas

No dia do fotojornalista, profissionais pretos comentam contraste racial 

Por Marcos Ramos : setembro 3, 2021

Fotojornalistas negros apontam desigualdade racial no ramo e criticam abordagem da grande mídia nas periferias

Muito mais que o simples ato de apertar um botão. É necessário conhecimento técnico, estudo, perspectiva e, acima de tudo, senso crítico para exercer o fotojornalismo. Através de imagens, o fotojornalista consegue transportar as pessoas e ambientar a cena de uma notícia, independente da distância.

Responsável por dizer o que palavras não conseguem e tornar as informações vívidas e mais claras, o fotojornalista tem um compromisso que vai além de simples registros ou de cliques bonitos. Mas nem sempre houve fotojornalismo, durante os primeiros séculos da imprensa as notícias continham apenas os dados e fatos investigados pelo repórter. Em 1880, o jornal Daily Herald, de Nova York, fez história ao ser o primeiro a veicular uma imagem para atrair os leitores.

Desde então, a fotografia se tornou uma peça importante para compor o tabuleiro do jornalismo e nasceu, então, a profissão de repórter fotográfico, homenageada em dois de setembro.

Hoje, muitos profissionais da área são reconhecidos e aclamados, mas, segundo Jéssica Batan, fotojornalista carioca de 30 anos formada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a mesma valorização não pode ser observada em relação aos fotojornalistas pretos, especialmente mulheres.

Fotojornalista retinto, Júlio César Almeida25 anos, exemplifica como o racismo estrutural afeta o trabalho e é responsável pelos seus poucos colegas de profissão também negros:

“Ter a pele mais escura significa que o espaço vai estar bem menor para você. Quantas vezes não fui confundido com um garçom e não me viram como um corpo presente?”

Jéssica Batan 

 

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Jéssica sempre teve contato com a câmera fotográfica por influência de sua mãe, que registrava os momentos da família durante sua infância. Ela sempre soube que queria ser jornalista, mas a decisão de juntar a fotografia com a prática jornalística veio depois, quando se deslocava até a faculdade e observava as pessoas na rua.

Seu trabalho consiste em registrar o cotidiano da periferia, enaltecendo a arte e bons momentos, em contraste à mídia que, em geral, divulga o povo preto e periférico relacionado a notícias de tragédia.

“Queria passar o lado positivo de pessoas pretas e periféricas, já que a mídia divulga a favela só como um lugar de violência e crime, quando na verdade tem tanta coisa boa e bonita, tanta arte, e eu via isso muito naturalmente”, explica Jéssica, que percebeu esse diferencial em suas fotos.

Esse propósito de sua fotografia pode ser percebido no registro de Gilberto, um senhor quieto de Madureira (RJ) descrito por Jéssica como alguém em quem ela enxergava Deus e Exú.

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Retrato de Gilberto feito por Jéssica Batan. Suas principais referências na fotografia são o mineiro Januário Garcia e o estadunidense Gordon Parks
Acervo Pessoal/Jéssica Batan

Fotojornalista na prática

Com a chegada da pandemia e durante a crise sanitária, a fotojornalista praticamente não fotografou, mas manteve  seu emprego. Apenas um ano e meio depois, fez um trabalho para a primeira coleção da marca Preto Novo.

 

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O fotojornalismo já proporcionou experiências marcantes a Jéssica. Uma visita ao Quilombo da Rasa em Búzios, no Rio de Janeiro, em 2016, foi uma delas. Ela destaca a presença de idosos e crianças que contavam histórias fascinantes. “Estar ali naquele momento foi uma experiência incrível, principalmente por ser uma mulher preta e não saber muito sobre o passado da minha família”.

Quilombo da Rasa, 2016: Uma das experiências mais marcantes proporcionadas pelo fotojornalismo a Jéssica|
Jéssica Batan

Para Jéssica, o dia do fotojornalismo é importante para reforçar a ideia de “uma ferramenta de perpetuação de memória”. Segundo ela, “é contação de história, de um jeito muito radical” e essencial no “contexto sombrio em que o Brasil se encontra atualmente”.

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Júlio César

Júlio César Almeida começou a se interessar por fotografia em 2013, aos 17, quando estava saindo do colégio e indo para a faculdade. Ao visitar uma exposição no Sesc Belenzinho, se encantou pelas fotos e decidiu seguir a profissão, inspirado por nomes como Lázaro Roberto e Januário Garcia.

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Fotojornalista Júlio César conta como o racismo estrutural afeta seu trabalho
Acervo Pessoal

Quando pensa nas aventuras proporcionadas pelo fotojornalismo, ele recorda de quando tentou ir a um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) em São Bernardo (SP). Porém, acabou chegando a um outro local por engano, onde estava tendo uma operação policial. “Fez eu repensar algumas pautas, porque foi terrível”, admite, rindo.

Durante a pandemia, Júlio César se manteve com vendas de fotos e filmagens. Sua exposição está acontecendo no Estúdio Lâmina, no Vale do Anhangabaú. A entrada é gratuita e deve acontecer até o final de setembro de 2021, os ingressos são garantidos aqui.

Racismo

Como Jéssica, Júlio César busca humanizar as pessoas pretas e periféricas com a sua fotografia, mostrando a felicidade e a beleza em contraste ao estigma de sofrimento que as envolve.

A fotografia, segundo ele, é um ramo elitista e majoritariamente branco, o que ele tenta reverter com registros de manifestações do movimento negro. Homem preto retinto, ele percebe como o racismo estrutural afeta seu trabalho. Sobre o mercado do fotojornalismo, afirma que “os pretos não são valorizados, são chamados apenas em pautas sobre outras pessoas pretas, que normalmente envolvem a violência e o crime que elas sofrem”.

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Marcha das mulheres negras na Praça Roosevelt em 2018 na cidade de São Paulo
Júlio César Almeida

O fotojornalista reconhece a importância disso, mas desabafa: “São apenas em dias específicos, como o dia da Consciência Negra, e isso reflete uma falsa representatividade da grande mídia.” Para ele, o dia do fotojornalismo ainda expressa a desigualdade entre profissionais brancos e pretos. E, na sua opinião, não há muito sendo feito a respeito dessa falta de oportunidades.

Editado por Fernanda de Almeida.

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