Agora, os casais homoafetivos possuem as mesmas oportunidades para a adoção no âmbito jurídico e são mais abertos à diversidade racial e faixa etária das crianças
Uma família como qualquer outra
Desde 2015, a adoção por parte de casais homoafetivos no Brasil é reconhecida e respeitada legalmente, afirmando novas concepções acerca da ideia de “família”.
Em setembro do mesmo ano, uma pesquisa de opinião pública sobre o panorama da adoção no século XXI, realizada pelo Instituto Evan B. Donaldson Adoption, revelou uma falta de compreensão acerca da experiência da adoção, combinada a falsas percepções públicas, que muitas vezes resultam em estigmas e estereótipos. Nesse debate, temas como o preconceito contra a comunidade LGBTQIAPN+, a burocracia durante o processo e a idealização de uma criança tornam-se bastante recorrentes.
O processo adotivo como projeto de filiação é regido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que zela pelos direitos desses vulneráveis, as crianças e os adolescentes, identificando-os como um “projeto de proteção jurídica”. A Doutrina da Proteção Integral do ECA, juntamente com os ideais promulgados pela Constituição Federal de 1988, que reconhece o filho como sujeito de direito, protegem os direitos dos cidadãos menores de idade.
“Uma criança que está chegando não é vazia. Ela vem cheia de histórias, de sentimentos e é um sujeito, não um objeto nas nossas mãos. Adotar é uma coisa que requer preparo, não é só emoção e amor. Adotar é, muitas vezes, muito mais razão, planejamento, conhecimento e informação, para depois encaminhar a situação para o lado mais afetivo, emocional e amoroso, na construção da relação de vínculo com a criança”, explica a doutora em Serviço Social e assistente social judiciária, Alberta Goes.
A doutora comenta também que, a adoção é mais do que um processo legal e as organizações familiares, sendo essas heteronormativas, homoafetivas ou unipessoais, ao desejarem a constituição de uma família, devem ser devidamente avaliadas e receberem um tratamento igualitário. A intolerância que a comunidade LGBTQIAPN+ sofre, e pode sofrer durante o processo de adoção, é criminalizada pela legislação nacional, mas pode ser reproduzida, inclusive, por profissionais envolvidos no decorrer do processo.
Paulo Tardivo, que compartilha o cotidiano de sua família em um perfil do Instagram juntamente com seu marido, Tiago Pessoa, conta sua experiência de adoção, no Ceará, “a gente sentiu uma recepção mais hostil tanto de algumas pessoas da cidade, quanto do abrigo, que era mantido pela Igreja Católica, e até de pessoas da justiça mesmo. Então, não era o sistema, eram as pessoas que estavam por trás. O sistema é muito igualitário e democrático, mas, às vezes, há uma pessoa que está atrás do sistema que dificulta e atrasa o processo”.
Ver essa foto no Instagram
A discriminação ligada ao fundamentalismo religioso também foi citada pela assistente social judiciária Alberta Goes, “a pessoa pode se deparar com profissionais que não tem um posicionamento ético, no sentido de reconhecer o conceito de família dentro da diversidade das organizações familiares existentes e nelas, a possibilidade de desenvolvimento de projeto adotivo. O grande desafio é, muitas vezes, combater o preconceito ao encontrar pessoas fundamentalistas e conservadoras, que levantam uma bandeira com a ideia de que a família só pode existir de forma heteronormativa”.
Panorama atual e processo de adoção
O processo de adoção é dividido em algumas etapas, que tem seu início na Vara da Infância e da Juventude, com a apresentação dos documentos requisitados e as orientações sobre como será o processo. Após o primeiro contato, a família é encaminhada para uma equipe multidisciplinar, que analisa as motivações inicias, as expectativas individuais e do casal e a realidade socioeconômica dos mesmos. Durante essa etapa, também são realizadas visitas à residência dos adotantes. O próximo processo, considerado por muitos casais como o mais complicado, é o preenchimento do perfil da criança, logo após o pedido de habilitação realizado pelo juiz. Assim que aprovada a habilitação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) insere o casal na fila de espera e, dependendo das preferências assinaladas no perfil, o processo poderá demorar meses ou até anos. “Foram 10 meses de habilitação e depois disso fomos para a fila. A gente parou no tempo e esperou o telefone tocar, porque você não sabe se vai demorar um dia, um mês, três ou dez anos”, relata Tiago.
Com relação ao preenchimento do perfil e seus critérios, Pessoa diz entender a necessidade do questionário, para que assim, não existam erros no momento da escolha da melhor família para cada criança, tendo em vista que “é escolhida a melhor família para criança, e não a melhor criança para família”.
Alberta Goes afirma que 34.508 pessoas pretendem adotar e suas preocupações principais são com relação ao perfil da criança. Geralmente, os casais procuram por uma menina, ainda pequena e branca. Porém a realidade dos abrigos brasileiros não é essa.
Ao longo de sua experiência, a assistente social judiciária percebe uma sensibilidade maior vinda de casais homoafetivos, principalmente com relação a idade e diversidade racial. Normalmente, essas famílias não possuem uma preferência.
O histórico legislativo
A regulamentação da prática de adoção no Brasil existe desde a década de 90, promulgada através da Lei nº 8.069. Já em 2009, a Lei nº 12.010, explicita os direitos da criança e do adolescente, garantindo a proteção e o bem-estar desses cidadãos.
Entretanto, apenas em maio de 2011 a união homoafetiva foi reconhecida como união estável, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mais tarde, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 175/2013 do artigo 1.723 do Código Civil, determinando que os cartórios realizassem casamentos de parceiros do mesmo sexo, proibindo assim qualquer movimento da Justiça que impedisse sua formalização como casal.
A decisão da Suprema Corte foi fundamental para que o casais homoafetivos atingissem os requisitos de adoção, como pode-se ler no segundo parágrafo do artigo 42 do ECA: “Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família”.
Apesar de tamanho desenvolvimento no âmbito legal, a Organização Mundial da Saúde (OMS) parou de considerar a homossexualidade como uma doença apenas em 1990. Essa atitude pode revelar uma falha estrutural no entendimento da homoafetividade como identidade sexual, natural da condição humana.
Betho Fers, doula de adoção- profissional que auxilia as famílias durante o processo de parentalidade via adoção- destaca a a importância dos casais homoafetivos entenderem seus direitos dentro de um processo adotivo. “Hoje, não tem mais nada que impeça um casal homoafetivo de ter filhos, então, se você enfrenta preconceitos no judiciário, nas instâncias da justiça, é importante que se perceba isso como uma infração da lei, um crime, que deve ser denunciado. É necessário que a adoção seja feita colocando o adotado como protagonista e que entenda que é possível formar vinculação através dessa via de parentalidade”.
VEJA MAIS EM ESQUINAS
‘Paulista fora da disputa’: bairro da República deve abrigar o novo espaço do Museu da Diversidade
No Dia do Orgulho LGBTQIA+, conheça 5 personalidades marcantes do movimento
Entenda o que é “pink money” e como as marcas utilizam essa estratégia problemática de marketing
O papel das redes sociais na luta LGBTQIAPN+ e na adoção
Nos últimos anos, as redes sociais vêm se tornando um lugar de acolhimento e segurança para determinados grupos. Diversos perfis de redes sociais buscam levar aos seus seguidores conteúdos encorajadores e informativos, proporcionando uma melhor experiência a quem procura ajuda e um local de “fuga”. As pessoas vão atrás de acolhimento dentro da internet já que, na ‘vida real’, são julgadas, atacadas e invalidadas.
Paulo Tardivo e Tiago Pessoa, fundadores do perfil familiapessoatardivo, explicam que, ao alcançarem relevância e engajamento buscaram promover a informação. “A gente não podia fingir que não tínhamos representatividade, pois existe um lugar em que as pessoas estão precisando de informação. Então, o nosso principal motivo é esse: naturalizar as nossas formações familiares. É uma família normal, com os mesmos perrengues e as mesmas dinâmicas que qualquer outra”.
Já Betho Fers, criador do perfil papaipeando comenta que, “as redes sociais são muito importantes para poder dar voz à quem protagoniza essas realidades. Então, hoje temos filhos adotivos, pais, mães e todas as pessoas presentes nesses modelos familiares dando voz à sua própria verdade”.
Ver essa foto no Instagram
Em contrapartida, Betho e Tiago pontuam que há uma contribuição negativa dentro das redes, tendo em vista que a internet é um lugar público em que as pessoas se sentem no direito de destilar seus ódios e preconceitos. Tiago explica que o ódio não será mais forte do que a luta de sua família e acrescenta, “a gente tenta abrir a porta da nossa casa e mostrar o que é de verdade, porque isso naturaliza e humaniza. Quando a gente humaniza, a gente traz as pessoas para mais perto da gente. Essa é a questão principal: humanizar a nossa família”.