Escravidão e gênero: o perfil das mulheres exploradas no Brasil atual - Revista Esquinas

Escravidão e gênero: o perfil das mulheres exploradas no Brasil atual

Por Gabriel Teixeira, Gabriel Borgonovi, Gustavo Oreb, João Pedro Haiter, Luis Henrique Taguchi e Pedro Melo. : julho 13, 2023

“No Brasil, por conta da situação de vulnerabilidade socioeconômica das pessoas, impera a lógica de que qualquer trabalho é melhor do que nenhum trabalho, e assim temos situações como as de trabalho escravo."/Foto: Freepik

Uma análise sobre as características do trabalho escravo feminino no país hoje em dia e todas as problemáticas que o envolvem

No Brasil, a escravidão atual é uma condição que permeia diferentes ambientes, envolve uma série de relações sociais e carrega o legado da escravização nos períodos colonial e imperial. No campo ou na cidade, a situação das mulheres sujeitas a essas circunstâncias chega a ser ainda mais complicada. 

Mesmo sendo vítimas de um crime, mulheres em situação analóga à escravidão, exploradas como empregadas domésticas, cuidadoras e profissionais do sexo, não são contabilizadas nos registros oficiais e tampouco conseguem alcançar os direitos e benefícios trabalhistas estabelecidos por lei, já que essas ocupações, na maioria dos casos, não são consideradas como “trabalho” pelas autoridades.

Segundo depoimentos de responsáveis pelo combate ao trabalho escravo no Brasil, já houveram casos em que todos os homens de um grupo explorado receberam as indenizações e verbas rescisórias que lhes eram devidas, e apenas as mulheres não tiveram acesso a esses direitos por conta de não terem sido enquadradas como trabalhadoras.

“No Brasil, por conta da situação de vulnerabilidade socioeconômica das pessoas, impera a lógica de que qualquer trabalho é melhor do que nenhum trabalho, e assim temos situações como as de trabalho escravo. Muitas pessoas acabam se sujeitando a oportunidades de trabalho que acabam resultando em uma violação, ou seja, escravidão contemporânea”, explica Rodrigo Teruel, analista de projetos do programa “Escravo, nem pensar!”, da ONG Repórter Brasil.

A exploração de pessoas em situação de vulnerabilidade social e financeira pelas elites do país pode ser considerada um exemplo explícito de como a sociedade brasileira, que adquire um perfil autoritário conforme se dá o seu processo histórico de formação e organização, é pautada no colonialismo interno, conceito trabalhado pelo sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, em seu texto “Sete teses equivocadas sobre a América Latina”(1965). 

A escravidão no Brasil de hoje, portanto, submete pessoas vulneráveis, de classe baixa e sobreviventes da miséria, a condições de trabalho desumanas, a fim de satisfazer as necessidades de uma elite dominante, que explora internamente os mais desamparados, revelando o caráter violento da estrutura sócio-histórica brasileira.

Em pesquisa realizada pela Repórter Brasil, foi constatado que, entre os trabalhadores resgatados entre 2003 e 2018, 5,2% são do sexo feminino. Esses números denunciam um problema de subnotificação de mulheres exploradas, sobretudo no meio rural, onde o trabalho escravo braçal realizado por homens fica em evidência, enquanto mulheres nas mesmas condições, porém exercendo atividades caseiras, não são resgatadas, pois passam despercebidas.

“No meio rural, geralmente os trabalhos exigem força física. Então em muitos casos, na maioria dos casos, você vai encontrar homens. Ainda que a gente tenha um problema de subnotificação de mulheres e exploradas também no meio rural. Tem casos aí de mulheres, que apesar de estarem nas mesmas condições do que os homens, às vezes por estarem realizando um trabalho doméstico numa frente rural, não foram resgatadas, não foram percebidas como escravizadas, enquanto os homens foram”, comenta Rodrigo.

A constatação torna-se ainda mais grave quando se nota que 71,3% do total de mulheres resgatadas da atividade escrava estão no meio rural. Entretanto, a parcela de mulheres violadas em exercícios urbanos é igualmente alarmante. A maior parte delas se encontra em casas de costura, de prostituição, ou atuando como empregadas domésticas.Entre todos os casos de exploração análoga à escravidão, o trabalho doméstico é um dos mais emblemáticos, e potencializou as denúncias nos últimos anos, que, por muito tempo, foram ignoradas ou naturalizadas. Um exemplo da desvalorização histórica da profissão é a criação muito recente da PEC das domésticas. Apenas em abril de 2013 foi criada uma regulamentação que abrangesse e reconhecesse as trabalhadoras de maneira formal.

“Se você for pensar, é muito recente a PEC das domésticas. Só na última década elas passaram a ter os mesmos direitos trabalhistas do que os outros trabalhadores do regime formal. O primeiro caso de trabalho escravo doméstico que se tem registro é de 2017. Isso significa que o trabalho escravo doméstico começou em 2017? Não. Mas, talvez, essa exploração era muito naturalizada antes”, diz o analista de projetos. 

A partir da emenda, os casos de escravas domésticas começaram a surgir com mais frequência, sensibilizando a sociedade brasileira sobre o tema. O caso de Marilena Gordiano, por exemplo, mantida em condições de escravidão durante cerca de 38 anos até ser resgatada, no ano de 2020, com 46 anos, chocou o Brasil, tornando-se alvo de investigação do Ministério Público Federal e recebendo grande cobertura da imprensa.

Segundo Rodrigo, essa história serviu como modelo para que a população percebesse outros casos que estavam ocorrendo. O analista acredita que “o trabalho escravo doméstico tem uma característica peculiar. Em outros casos de trabalho escravo, a relação empregatícia é muito curta, mas no doméstico geralmente são pessoas que são escravizadas pela mesma família há décadas. Existem casos de 70 anos de uma mulher escravizada pela mesma família. Então você tem um vínculo afetivo criado muito forte”.

Um dos casos citados por Rodrigo é o de uma mulher de 84 anos resgatada depois de 72 anos de trabalho escravo doméstico no Rio de Janeiro. Desde a criação do sistema de fiscalização, essa é a exploração mais longa de escravidão contemporânea registrada no Brasil. A senhora trabalhou como empregada doméstica de uma mesma família por três gerações até ser resgatada.

Outro fator relevante para a análise do perfil das mulheres submetidas ao trabalho escravo no Brasil é o nível de escolaridade dessas pessoas. Segundo o relatório “Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?”, elaborado pelo portal “Escravo, nem pensar”, projeto educacional da ONG Repórter Brasil, 62% das mulheres em situação de trabalho escravo no país são analfabetas ou não terminaram o quinto ano do Ensino Fundamental.

A questão da imigração de pessoas em situação de vulnerabilidade social de países como Venezuela, Bolívia e outras nações da América do Sul também é um fator que faz com que as pessoas sejam induzidas ao trabalho análogo ao de escravo, já que acreditam que precisam de um trabalho, independente de qual seja. Contudo, para Rodrigo, essa questão também acontece com brasileiros que migram de suas cidades para outras regiões do país.

“Uma coisa que é interessante a gente entender é que, no geral, o trabalhador escravizado é migrante, seja ele migrante interno, como um maranhense escravizado em São Paulo, ou migrante internacional, um boliviano, uma pessoa que uma pessoa que vem de outro país. Por que geralmente acomete o migrante? Porque ele está longe da rede de proteção dele e, longe de sua rede de proteção, ele fica mais vulnerável ainda.”

O analista de projetos do “Escravo, nem pensar!” ainda destaca que o idioma é uma grande barreira para os imigrantes conhecerem os seus direitos trabalhistas no Brasil, além do fato de que muitas vezes essas pessoas entram de forma ilegal no país e não sabem do processo de regularização migratória sem nenhum tipo de sanção penal.

“Se você não conhece a língua, você não consegue se comunicar direito. Você não sabe o que são direitos trabalhistas, nem o que é CLT, às vezes. Isso pode acontecer. Você não tem acesso e você não tem conhecimento sobre o seu pleno acesso a direitos. Outra, você muitas vezes está indocumentado. Você não sabe que tem acesso a direitos, você não sabe que você tem acesso a regularização migratória sem ser sem sofrer uma sanção penal por isso.”

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Mecanismos de combate

Estando evidente o problema da escravidão atual no Brasil, quais seriam as melhores medidas para comabtê-la? Historicamente, o combate ao trabalho escravo possui três eixos principais: a repressão, ou seja, os órgãos fiscalizadores que resgatam as vítimas, responsabilizando os empregadores; a prevenção, que ocorre por meio de ações como as educacionais, por exemplo, ou através de campanhas e processos informativos; e a assistência às vítimas após o resgate.

Segundo Rodrigo, o Brasil tem avançado na assistência às vítimas nos últimos anos, mas ainda precisa evoluir em alguns aspectos.

“Quando uma pessoa é resgatada, ainda no âmbito da fiscalização, ou seja, do âmbito repressivo, você tem algumas medidas, por exemplo, ela tem direito a reaver todos os direitos trabalhistas que foram sonegados, verbas rescisórias, FGTS, INSS, tudo isso que foi eventualmente sonegado dela, ela vai ter isso reavido pelo empregador. Depois, o trabalhador tem direito ao seguro desemprego por três meses. É uma modalidade específica concedida ao trabalhador resgatado do trabalho escravo desde 2002, e passou a ser implementada em 2003. Acabando esse período de três meses, o que acontece com o trabalhador muitas vezes? Ele volta para aquela situação de vulnerabilidade. Então por isso que a gente diz que o trabalho escravo é um ciclo, porque acaba se perpetuando essa vulnerabilidade”, explica. 

Para o especialista, a inclusão de ações sociais para as vítimas seria uma forma de prevenir que os abusos se tornem reincidentes. Incluir o trabalhador resgatado em programas sociais, benefícios socioassistenciais e em serviços assistenciais, como o Centro de Referência Especializado em Ações Sociais (CREAS) e o Bolsa Família, por exemplo, seriam medidas cabíveis.

“Temos a luta para incluir cada vez mais a assistência social. Já existem iniciativas pontuais em alguns estados, por exemplo, o Mato Grosso já há alguns anos implementa um projeto de qualificação profissional para egressos do trabalho escravo, que é o projeto ação integrada, que também foi adaptado para outros estados, como Bahia e Rio de Janeiro. Você tem iniciativa nesse sentido também”, exemplificou o analista.

Outro ponto importante a se destacar é a responsabilização dos empregadores do trabalho escravo. Atualmente, as empresas flagradas na realização dos vínculos ilegais entram em uma “lista suja” no Ministério do Trabalho, que é usada como gerenciamento de risco por bancos e instituições financeiras que, outrora, ofereceriam crédito para a empresa. Mais medidas como esta devem ser garantidas para o fim da impunidade no trabalho escravo brasileiro.

Editado por Mariana Ribeiro

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